Bingo proibido, mais jogadores nas clínicas.

Jogo Responsável I 22.03.04

Por: sync

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O movimento aumentou de 40% a 50% nos ambulatórios de orientação a jogadores compulsivos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de São Paulo (USP), depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fechou os bingos, no dia 20 de fevereiro. Além de casos novos, os médicos e psicólogas dos dois serviços – os únicos que prestam esse atendimento no País – registraram também o retorno de pacientes antigos que já haviam recebido tratamento no passado. Essa demanda ainda não se refletiu na associação dos Jogadores Anônimos (JA), grupo de ex-viciados que se reúnem em busca de apoio mútuo para garantir a abstinência. São as clínicas e consultórios que recebem os primeiros pedidos de socorro. "Bingos abertos ou fechados não fazem diferença para quem já chegou a essa fase de auto-ajuda", observa Márcio, nome fictício do relações-públicas da organização em São Paulo.O psiquiatra Marcelo Fernandes, coordenador do Programa de Orientação e Atendimento ao Dependente (Proad), da Universidade Federal de São Paulo, constatou também uma migração de jogadores de bingo para outros tipos de diversão. "Como são jogadores compulsivos, que não conseguem ficar sem jogar, muitos buscam a loteria, as corridas de cavalos e o jogo do bicho como válvulas de escape", informa o médico.Clandestinos – Conforme relatos de alguns pacientes, tanto do Proad como do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidde de São Paulo, a proibição das casas de bingo está levando também à proliferação de salões clandestinos de jogos, principalmente no centro da cidade. "Não basta tirar a oferta para coibir a demanda, porque sempre se criam subterfúgios para burlar a lei", observa Fernandes, o coordenador do Proad.A compulsão do jogo pode levar ao desespero, quando o jogador não acha outra saída. "Um de nossos pacientes que já havia usado cocaína voltou à droga com a proibição do bingo", revela a psicóloga Juliana Bizeto, da equipe do Proad. "E quem bebia antes está bebendo mais", acrescenta o coordenador do ambulatório. Segundo o médico, essa migração para outros vícios reflete a angústia de dependentes que, de uma hora para outra, ficaram perdidos com a proibição do jogo.Os riscos são ainda maiores, porque há jogadores compulsivos que são suicidas potenciais. "Uma pesquisa feita no Hospital das Clínicas mostrou que 15% de nossos pacientes já tentaram se suicidar e que 80% já levantaram a hipótese de suicídio como uma saída", revela o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do Amjo.Preocupada com tais ameaças, o ambulatório do Hospital das Clínicas providencia sessões de psicoterapia e consultas psiquiátricas para candidatos a tratamento. A fila de espera no Amjo, que tem capacidade para atender 120 pacientes por ano, é de 3 a 12 meses. O Proad tem 80 pessoas matriculadas em seu cadastro, para atendimento em sessões semanais. Nos dois casos, o serviço é gratuito."Trabalhamos com a perspectiva de abstinência (o abandono do jogo), mas também com o conceito de redução de danos, que é a substituição de um jogo de azar por outro menos danoso", disse Fernandes, referindo-se à filosofia do Proad, em sua opinião inovadora.Para o psiquiatra, passar da máquina para o jogo de mesa, de preferência em casa, já é lucro. "Se o dependente joga gastando menos dinheiro e ficando pouco tempo num salão de jogo, isso é um progresso", observou Fernandes.A equipe do Hospital das Clínicas segue outro método. "Somos tolerantes e não mandamos embora quem busca a redução de danos, mas insistimos na abstinência total quando a tentativa fracassa", afirma Tavares. "Aí fechamos com os Jogadores Anônimos, cujos freqüentadores têm de, cada dia, evitar a primeira aposta", acrescenta o coordenador do Amjo.Proibição – Para os especialistas em atendimento a jogadores compulsivos, não é o fechamento dos bingos que vai resolver o problema do jogo – uma doença que tem de ser tratada com a preocupação de ajudar e curar o paciente."O governo não está preocupado com o jogador, mas com o aspecto legal, enquanto as casas de bingo podem servir para lavagem de dinheiro e sonegação de impostos", adverte Fernandes, o coordenador do Proad. Tanto ele como seu colega Tavares, do Hospital das Clínicas, acham que, se tiverem de voltar a funcionar, os bingos precisam ser regulamentados.Os psiquiatras sugerem que, nesse caso, as casas de jogos sejam bem fiscalizadas e tenham a obrigação de advertir os usuários para os riscos que correm. "O jogador tem de saber que pode adquirir um vício e que quase sempre vai perder para a máquina", observa Tavares. Uma eventual regulamentação deveria prever também, aconselham os médicos, a destinação de parte dos lucros para o tratamento de jogadores compulsivos."Se não for assim, seria melhor fechar definitivamente os bingos, porque estava havendo uma verdadeira orgia", concorda Fernandes. Pessoalmente contrário à proibição radical, o psiquiatra do Proad insiste na regulamentação. Reduzir jogos eletrônicos, controlar o número de casas e garantir recursos para informação e tratamento dos usuários são algumas das medidas que os especialistas sugerem ao governo nesse caso.A luta de cada dia contra a primeira aposta.
Jogadores compulsivos dão testemunho de determinação e solidariedade.
Um mês sem jogar já foi uma vitória para Áurea, pseudônimo de uma mulher de 54 anos que, na noite de quinta-feira, comemorou esse marco numa reunião dos Jogadores Anônimos (JA), no salão paroquial da Igreja das Almas, na Ponte Pequena. E era mesmo para comemorar: "Joguei uns seis anos, parei dois, tive uma recaída e agora estou decidida a parar de vez", disse Áurea, depois de um depoimento aos companheiros emocionados – 26 homens e mulheres que a ouviram em silêncio, alguns enxugando as lágrimas dos olhos.Funcionária administrativa de uma empresa, Áurea abandonou as máquinas de jogo na noite de 18 de fevereiro, dois dias antes de o presidente Lula fechar os bingos. "Graças a Deus, porque eu perdia tudo – dinheiro, saúde, tempo, a confiança e o diálogo com minha filha, essa que está aqui a meu lado me dando apoio".Márcio, 45 anos, o relações-públicas estadual dos Jogadores Anônimos, ouviu essas palavras como mais um testemunho de encorajamento para quem, como ele e todos os participantes do grupo, enfrentam o vício com esperança e determinação."Estou abstêmio há 1 ano e dois meses depois de 20 anos de vício e várias recaídas", disse Márcio, um vendedor que perdeu tudo no jogo – emprego, família, bens materiais, vergonha e caráter, como ele mesmo contou. Sentado diante de um auditório amigo e solidário, como se estivesse fazendo uma confissão, Márcio revelou que estava chegando do tribunal, onde compareceu como réu acusado de furto. Dinheiro roubado para jogar.Não era uma história única e excepcional, pois outros companheiros já percorreram trajetória parecida. "Pratiquei estelionato, falsificando assinaturas de minha mulher e de minha filha", disse Marcílio, 65 anos de idade, 7 anos de abstenção, depois de quase 50 jogando. "Isso mesmo, pois comecei ainda menino e só parei quando cheguei ao fundo do poço". Marcílio perdeu três casas, sete automóveis e mais de R$ 400 mil, em moeda atualizada, depois de ficar devendo a 12 bancos e 26 financeiras. "Paguei R$ 350 mil quando parei de jogar, mas o resto não estou conseguindo." Cavalos, bingo, dadinhos, loteria, bicho, baralho, chapa de automóvel, nada escapou. "Eu era uma fábrica de jogo, o pior vício que existe". Pior até que o álcool, disse Marcílio, que também bebia muito, mas conseguiu parar há 23 anos, quando resolveu freqüentar as reuniões dos Alcoólicos Anônimos (AA), das quais continua a participar como coordenador, no bairro do Cambuci."Proibiram o bingo? Para mim não faz diferença, porque, depois que larguei, nove meses atrás, nunca mais tive vontade de jogar", disse Maria, 46 anos de idade e 26 de casada, que por muito pouco não perdeu a família por causa do jogo. ‘Quando acabava o meu salário (ela ganhava R$ 1.300 até ser despedida do emprego), roubava dinheiro do meu marido, que não desconfiava de nada".Só ficou sabendo quando ela contou, isso depois de abandonar o bingo, nove meses atrás. "Até agora sem nenhuma recaída", comemora Maria, agradecendo o apoio dos filhos, um rapaz e uma moça, que sabiam do problema e a encorajaram a entrar para a associação dos Jogadores Anônimos. Aliás, irmandade, como observa Márcio, o relações-públicas. Embora a entidade não tenha caráter religioso ou confessional, seus freqüentadores iniciam e encerram as reuniões com uma oração, na qual pedem a Deus serenidade e perseverança para vencer a doença do jogo. "Sou um jogador compulsivo" ou "sou uma jogadora compulsiva", assim cada homem e cada mulher se apresenta ao fazer seu depoimento. Ninguém fala mais de cinco minutos, mas todos falam o que sai do coração, com a certeza de que nenhum segredo vai sair das quatro paredes do salão."Quem você vê aqui, o que você ouve aqui, quando você sair daqui, deixe que fique aqui", aconselha um cartaz dependurado na mesa do coordenador. Cerca de 30 pessoas participam de cada reunião. Movimento fundado há 11 anos no País, os Jogadores Anônimos funcionam em São Paulo, Rio, Minas Gerais, Bahia, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com reuniões duas vezes por semana.  Estadão – JOSÉ MARIA MAYRINK

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