Jogatina a céu aberto no Rio de Janeiro

Jogo do Bicho I 17.11.03

Por: sync

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Um retoque na imagem e pronto: sem precisar se esconder e livre da repressão de dez anos atrás, o jogo do bicho voltou às ruas e a se aproximar da polícia. Está tão próximo que bastaram 152 passos para sair na última quarta-feira de uma banca de apostas na Rua Senhor dos Passos, no Centro da cidade, e alcançar o prédio onde Anthony Garotinho, secretário de Segurança Pública do Rio, despacha todos os dias, na Avenida Presidente Vargas. Posto na clandestinidade em 1993, quando uma decisão da juíza Denise Frossard levou os principais bicheiros para trás das grades, o jogo voltou à atividade como nos anos que antecederam a condenação por formação de quadrilha dos chefões da máfia no Rio.
Bem perto do escritório do chefe de Polícia Civil.
No Centro, aliás, o jogo do bicho já está em toda parte. Perto do prédio onde trabalha o chefe de Polícia Civil, delegado Álvaro Lins, há cinco pontos de apostas num raio de 270 passos. Todos instalados nas calçadas, como escritórios particulares.
— Hoje é uma opção: ou nós passamos a reprimir o tráfico, o contrabando de armas, ou partimos para prender anotador. O que é prioridade para a sociedade neste momento? — pergunta um delegado de polícia, pedindo para não ser identificado.
Antes escondidos e tímidos, os apontadores (homens e mulheres que anotam as apostas) já são vistos despachando tranqüilamente em banquinhos, com uma mesinha à disposição na calçada. Há casos em que os apontadores instalam seu ponto em pequenas salas, próximas às calçadas. Em várias ruas, em diferentes pontos do Centro, lojas (como minicassinos) protegidas por vidros pretos e seguranças armados oferecem jogos eletrônicos para maiores de 18 anos. A polícia faz vista grossa e o jogo corre solto.
Apostar no bicho, no entanto, continua barato: o mínimo é de um real. Os prêmios são gordos (um real apostado no milhar pode render R$ 4 mil) e atraem clientes de todas as classes sociais.
— Não acho que o jogo do bicho voltou às ruas. Na verdade, ele nunca saiu. O que mudou, na minha opinião, foi a exposição dos bicheiros. Antes mais sociáveis, eles agora estão mais retraídos. Claro que existe a exceção do carnaval, mas, se ocorreu uma grande mudança, ela aconteceu aí, na retração dos bicheiros — afirma Marina Maggessi, titular da Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil (Cinpol).
Jogos eletrônicos, um novo e lucrativo ramo.
A juíza Denise Frossard, que atualmente é deputada federal (PSDB-RJ), acredita que, passado o susto inicial da condenação, os bicheiros concluíram — mesmo com a pena máxima aplicada — que havia saído barato. Para a população, na opinião da juíza, ficou um sentimento de impunidade e isto ajudou no crescimento da criminalidade:
— A impunidade somou-se à corrupção e à falta de investimento na força policial e na estrutura judiciária. Criamos com isso outros vícios perigosos presentes na máquina pública. Um ambiente ideal para o crescimento da criminalidade — acredita a deputada Denise Frossard.
Em dez anos, segundo investigações de policiais ouvidos pelo GLOBO, os bicheiros expandiram seus tentáculos. Passaram a explorar outros negócios, como os jogos eletrônicos: máquinas de videopôquer, videobingo e caça-níqueis. Assumiram definitivamente o controle dos desfiles do carnaval carioca (que deixou de ser popular) e entraram no ramo imobiliário.
— Eles também abriram sociedade com policiais, dividindo territórios no subúrbio do Rio e em vários municípios da Baixada Fluminense. Nós mesmos investigamos o envolvimento de policiais com um bicheiro da Baixada Fluminense — disse uma autoridade policial do Rio, preferindo não ser identificada.
Denise Frossard lembrou que a condenação dos bicheiros era uma chance de pôr um fim na impunidade:
— A sentença de 1993 representou uma oportunidade de reversão nas expectativas da sociedade com relação à impunidade. A sentença contrariou o sentimento até de pessoas de bem. Hoje vivemos uma situação que alimenta um sentimento popular bem parecido com aquele de 1993, e o estado está necessitando de medidas e políticas públicas capazes de, novamente, reverterem as expectativas. Recuperar as possibilidades de operação da máquina pública contra o crime é medida emergencial — afirmou Denise Frossard.
Uma investigação feita há dois anos pelo procurador da República Luiz Francisco de Souza conseguiu comprovar uma ligação curiosa envolvendo as máquinas caça-níqueis: os jogos eletrônicos no Brasil tinham a assinatura da máfia italiana. O próprio Luiz Francisco recebeu um trabalho das autoridades policiais italianas. A conclusão: mafiosos como o italiano Lillo Lauricella e o espanhol Alejandro Ortiz estariam por trás das máquinas exportadas para o Brasil.
No Rio, ano passado, a briga pelo controle de pontos de apostas do bicho e de máquinas caça-níqueis na Zona Oeste e outras regiões do Rio levou à morte de dezenas de pessoas. O mais surpreendente foi descoberto pelos policiais da Delegacia de Repressão às Ações do Crime Organizado (Draco) que trabalham no caso: eles identificaram que os herdeiros de Castor de Andrade (Rogério de Andrade, sobrinho do contraventor, e Fernando Iggnacio, genro do bicheiro) disputavam também o controle do mercado de transporte alternativo. Uma investigação apura o suposto uso de Kombis por testas-de-ferro dos bicheiros para o transporte de drogas, armas e munição entre favelas. Oficialmente a polícia registra 12 pessoas assassinadas na guerra.
A briga entre Rogério de Andrade e Fernando Iggnacio envolve cifras que ultrapassariam, segundo cálculo da polícia, os R$ 20 milhões por ano. Uma fortuna para quem assumir o controle dos negócios que já foram de Castor de Andrade.
— O que nós sabemos é que eles brigam pelo espólio do Castor de Andrade e por negócios novos, como as máquinas caça-níqueis — disse um policial da Secretaria de Segurança Pública. Contraventores ainda resolvem disputas a bala.
Foi juntando evidências e colecionando provas que em 1993 a juíza Denise Frossard, atualmente deputada federal, conseguiu o que muitos nunca acreditaram: em uma só decisão levou os 14 principais bicheiros do Rio à prisão. Uma condenação por formação de quadrilha que rendeu a pena de seis anos de reclusão à cúpula da contravenção. Parecia o fim da impunidade e um golpe mortal no crime organizado do Rio. Dez anos depois, no entanto, pouca coisa mudou.
Mesmo com a fachada de homens de bem, os bicheiros nunca abandonaram seu principal método: resolver pendências a bala. Assim, numa disputa pelo espólio de Castor de Andrade, seu filho foi executado na Barra da Tijuca em 1998. Paulinho de Andrade, herdeiro do chefão do jogo do bicho e ex-presidente da Mocidade Independente, foi assassinado a tiros com seu segurança. O primo de Paulinho, Rogério de Andrade, foi acusado e condenado pelo crime. Ele chegou a ser preso, mas conseguiu um hábeas-corpus e saiu da prisão. A Justiça derrubou o hábeas-corpus, mas Rogério nunca mais foi capturado.
A morte de Paulinho de Andrade abriu portas para outras disputas internas, envolvendo Rogério de Andrade e Fernando Iggnácio. Em agosto de 2001, o detetive aposentado Everaldo de Jesus Silva foi assassinado. Ele seria segurança de Rogério. Em setembro de 2001, o técnico em eletrônica Sérgio Maciel de Carvalho foi assassinado na porta de casa, em Bangu. O crime também foi atribuído a Rogério.
O Globo – Antônio Werneck

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