Memórias de um colecionador de bilhetes de loterias

Loteria I 31.10.14

Por: sync

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Ao folhear uma das pastas onde guarda as 270 páginas do livro que ainda sonha em publicar sobre bilhetes de loterias, Sylvio Luongo se detém em uma delas, ajusta os óculos e lê para si o que está escrito na estampa de um bilhete: “Loteria do Estado de São Paulo, 1926”. O bilhete é do ano em que nasceu, mas não do mês exato. “Estou tentando um bilhete de São Paulo de maio de 26, mas ainda não consegui”, conta.

Sylvio nasceu em 20 de maio de 1926, na Mooca, bairro da cidade de São Paulo. Fazia um ano que seu pai havia deixado de vender bilhetes nas ruas para abrir sua própria lotérica, a Casa Luongo, na Rua 3 de Dezembro, número 8, na capital paulista. Em 1965, herdou os negócios do pai e duas décadas depois, aos 60 anos, iniciou a atividade que até hoje o motiva: colecionar bilhetes e histórias da Loteria Federal e de loterias pelo mundo.

“Minha mulher não se conforma com isso. Briga comigo porque diz que eu mexo com papel velho, mas é um prazer”, brinca. São caixas e mais caixas guardadas em um escritório no centro de São Paulo. Lá estão todas as extrações da Loteria Federal desde que a CAIXA assumiu as loterias, em 1962, além de milhares de bilhetes de loterias do Brasil, vários deles do século XIX, e do mundo. A coleção internacional vai das antigas União Soviética, Iugoslávia e Tchecoslováquia ao Chipre, passando por Estados Unidos, Portugal, Itália, Eslovênia, Romênia, Gibraltar, Irlanda, Croácia, Canadá, México, Costa Rica, Japão, Tailândia, China, Índia, Malásia e Nova Zelândia.

Coleção pronta para virar livro

A coleção resultou num livro que tem praticamente pronto, mas nunca conseguiu publicar. No trabalho, Sylvio reuniu histórias sobre as finalidades das premiações e curiosidades das loterias, além de textos sobre o ato de colecionar e colaborações de amigos. O livro surgiu porque, além dos bilhetes, sua outra grande paixão é escrever. “Quando criança, eu não colecionava nada, mas já escrevia por prazer. Tem vezes que estou na cama e não consigo dormir, aí eu preciso levantar, escrever, pôr no papel para conseguir dormir”, conta.

Para conseguir bilhetes, Sylvio se corresponde com colecionadores brasileiros e de países como Espanha e Coreia do Sul. Envia para eles os objetos que precisam (selos, postais, cédulas) e recebe de volta os bilhetes de loterias. Outro método é conseguir in loco, seja pessoalmente ou por meio de filhos e amigos. “Quando eles iam viajar, eu dizia que não precisava comprar nada, apenas pedia para me trazerem um bilhete. Ultimamente eu peço para tirarem uma fotografia numa casa lotérica”, conta mostrando fotografias dos filhos em lotéricas de lugares como Croácia e Eslovênia.

A família Luongo e as loterias

A história da família Luongo com as loterias tem mais de cem anos. O pai de Sylvio, José Luongo, deixou em Monte San Giacomo, na província de Salerno, na Itália, a mulher grávida da primeira filha e veio para São Paulo em 1913, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial. José tinha 24 anos.

Na capital paulista, procurou diferentes empregos até se estabelecer como engraxate no centro da cidade, na Travessa do Comércio. “O sujeito precisava engraxar o sapato porque a várzea do Carmo aqui era tudo lama, o sujeito subia a parte elevada e o sapato ficava sujo, então não podia ir ao banco, fazer nada. Então meu pai aproveitava, engraxava o sapato e pendurava um bilhetinho [de loteria] e perguntava: ‘não quer levar um bilhetinho? O prêmio é tanto’”, conta Sylvio.

O negócio deu certo. Oito anos depois de chegar ao Brasil, José trouxe a mulher e a filha. Aos poucos, os irmãos também foram chegando. Com um deles, em 1925, finalmente abriu sua lotérica. “Meu pai começou a dar bilhete pros revendedores, sem o sujeito pagar. Ele dava crédito, todos os vendedores ambulantes eram italianos, vieram da província do meu pai. Eles vinham aqui e iam procurar meu pai, e ele dava dois, três bilhetinhos pro sujeito se virar.” Além da irmã italiana, Sylvio teve mais cinco irmãos. Quando o pai morreu, em 1965, assumiu a lotérica. “Ninguém conhecia o negócio, eu era o único”, explica.

Nessa época, a Casa Luongo já tinha se transferido para Rua Direita, número 89. Sylvio ampliou o negócio, tornou-se presidente da Associação dos Lotéricos do Estado de São Paulo e dirigente da Federação Nacional dos Lotéricos e da Fecomércio. Nos anos 1990, mudou a Casa Luongo para o Largo do Arouche e abriu duas filiais, nos aeroportos de Guarulhos e Congonhas. Em 2006, já morando em Santos, fechou a última lotérica que mantinha aberta, a de Congonhas, mas não parou de colecionar bilhetes.

Íntimas frações de tempo

“Olha, são uns bilhetes bonitos, eu fico com água na boca quando vejo isso”, conta enquanto folheia os bilhetes, alguns datados de 1824. Sylvio sabe a história por trás de todos os bilhetes antigos que possui. “Houve a Revolução Farroupilha [1835-1845], e o Bento Gonçalves se encontrava com um problema: tinha soldados feridos, mas não tinha onde tratá-los. Ele fez, então, uma loteria para construir um hospital”, conta mostrando a reprodução do bilhete em seu livro.

Sylvio não quis dizer qual o seu bilhete favorito, o mais difícil de conseguir ou o de maior valor, mesmo que sentimental. Folheando o catálogo, mostrou um de 3 de março de 1925, ano em que nasceu uma de suas irmãs. “Eu sou o único que sobrou, morreu todo mundo. De vez em quando me dá depressão”, conta sem tristeza, com um sorriso no rosto. Entendi que não há um bilhete favorito. Os bilhetes são a sua memória, a lembrança de seu tempo, da cidade e das pessoas que ama. Colecioná-los é revolver a memória, manter-se vivo.      

Ao nos despedirmos, Sylvio me pede que anote num pedacinho de papel minha data de nascimento e a do fotógrafo que nos acompanha. Quer nos presentear com bilhetes de loteria que circularam no ano e mês em que nascemos. É uma prática que cultiva, gosta de brindar os amigos e parentes com as melhores estampas do ano em que nasceram. Sua coleção poderia se tornar peça de museu. Hoje, tem outra finalidade: são frágeis objetos que se tornaram íntimas frações de tempo a serem admiradas e compartilhadas por quem se interessar.  (Agência de Notícias Caixa)

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