Considerações sobre a primeira fase do julgamento das ADPFS 492 e 493

Destaque, Opinião I 25.09.20

Por: Magno José

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Marcello M. Corrêa e Paulo Horn*

 

Marcello M. Corrêa e Paulo Horn*

Na tarde da quarta-feira (23), o Supremo Tribunal Federal – STF iniciou o julgamento das ADPFs 492 e 493, respectivamente propostas pelo Estado do Rio de Janeiro e a Associação Brasileira de Loterias Estaduais, em outubro de 2017, que, em resumo, pretendem a declaração de não recepção de dispositivos do Decreto-Lei n. 204 de 1967, pela nova Ordem Constitucional inaugurada pela CF/88. Dispositivos esses que impedem os Estados de explorarem serviços públicos de loterias e de modernizarem os mesmos, sobretudo para poder competir em igualdade de condições com a União, em um mercado de apostas cada vez mais competitivo.

O ministro relator, Gilmar Mendes, expôs tecnicamente a lide, de forma fidedigna e assaz equilibrada, retratando com a exatidão que lhe é peculiar, os limites da demanda, com especial atenção para o fato da matéria não se confundir com o debatido, quando da elaboração da Súmula Vinculante nº 02, e que os Estados não pretendem a liberação dos jogos por via transversa, sem contudo revelar qualquer tendência no seu voto.

Na sequência, o Procurador do Estado do Rio de janeiro, Emerson Barbosa Maciel seguido pelo Procurador do Estado de Minas Gerais, Eduardo Guimaraes Nepomuceno Junior, bem destacaram os seguintes tópicos:

 

  1. a) loteria é serviço público porque geram receitas destinadas as prestações sociais do Poder Público, inclusive com fundamento no art. 194, da Constituição, quando trata da Seguridade Social;

 

  1. b) são receitas não tributárias dos estados;

 

  1. c) não constituem monopólio da União Federal e muito menos privilégio;

 

  1. d) estão dentro da competência residual dos Estados, pois a Carta Política de 1988 não fez qualquer vedação ou destinação expressa em favor da União Federal;

 

  1. e) o Federalismo prescinde de descentralização político-financeira; e

 

  1. f) deve ser assegurado aos Estados de forma isonômica, os mesmos meios de exploração facultados à União Federal, sobretudo diante do princípio da eficiência, em suma a competente distinção entre exploração concorrente e legiferação privativa.

 

Nesta quinta-feira (24) e no campo oposto, a União Federal, usaram a palavra, o Advogado Geral da União, José Levi e o vice-Procurador-Geral da República, Humberto Jacques de Medeiros. O AGU manteve-se, sem inovação, no seu papel, pois defendeu o monopólio da União Federal utilizando o conceito de privilégio, pois todos concordam que a demanda trata de serviço público. Sua linha de argumentação foi no sentido da vigência plena do diploma de 1967 e ainda tentou levar o debate para o campo penal (Com maior destaque na competência privativa e expressa da União Federal – Art 22, I). A PGR, iniciou revelando a intenção de trazer a Corte algo novo, que não tivesse sido aprofundado anteriormente, mas com um tempero amargo do ponto de vista intelectual. Vamos explicar.

Em primeiro lugar relembrou o pensamento filosófico de Adam Smith (falecido em 1790), economista, mais conhecido como pai do Liberalismo Econômico, ou seja, absolutamente fora do contexto de serviço público ou privilégio, posto que em sua obra clássica “A Riqueza das Nações” ,o Estado não deveria influenciar na economia do País/Nação, assim sendo a iniciativa privada ficaria livre para atuar. e que, fatalmente, não estava pensando em jogos com apostas como serviço público, quando falou de loterias, nem mesmo como exemplo para lavagem de dinheiro, em função do exemplo apresentado de que “quanto mais se gasta com bilhetes de loteria menos se ganha”.

Ainda querendo seguir no viés econômico, supôs que nem todos os Estados teriam volume para sustentar suas loterias e, finalmente, afirmou que a União Federal possui um privilégio em detrimento dos Estados limitados na exploração lotérica, sem mencionarem os demais estados excluídos da exceção trazida pelo vetusto decreto-lei. Isso em resumo, mas quem desejar ver na íntegra, basta acessar as gravações das Sessões plenárias do STF no YouTube.

Ao final do dia de hoje e debatendo com alguns amigos, ponderamos: a) com o jogo eletrônico, o apostador tem que ser cadastrado e, portanto, toda sua movimentação é rastreada, daí que falar em lavagem de dinheiro é pensar em outra loteria, nem a de Adam Smith, muito menos a explorada pelo setor público; b) que certos Estados não teriam mercado para convivência sustentável de loterias estaduais e federais, daí que a concentração da exploração na União Federal ser mais vantajosa para todos – data venia, eles se esquecem, da convivência histórica entre as loterias, federal e das províncias, bem como atualmente de todas as bancas de jogos ilegais ou tolerados existentes no Brasil, bem como a indústria de títulos de capitalização, os sorteios por televisão e assim por diante; e c) afirmou-que o apostador brasileiro não pode apostar em loteria fora do Brasil, em referência a lei de contravenções penais de 1941, que não faz tal proibição – cabe corrigir, pois a proibição se encontra na circulação do bilhete de loteria estrangeira no território nacional ou de um Estado em outro. Mas palpável com o novo Marco da Internet (impensável em 1941 para a maior parte da humanidade), hoje o brasileiro faz apostas em sites de qualquer parte do planeta, basta ter um celular e um cartão de crédito.

No extrato do resumo, para todos aqueles que trabalham com o mercado de apostas, públicos e privados, foi estarrecedor perceber como a AGU e a PGR perpetuaram uma narrativa que não encontra amparo fático do ponto de vista operacional moderno. Tivessem eles visto com atenção as peças produzidas pelos demais agentes do setor (recebidas como amicus curiae), talvez não tivessem ânimo de fazer tais sustentações. Nota-se o desconhecimento do setor ou o desejo de concentração de poder, simples assim.

E, para arrematar, não podemos deixar de sublinhar que o emprego do conceito de privilégio (sob qualquer ótica) não é republicano e também não é saudável para qualquer sistema federalista.

Mas tem mais uma nuance que passou desapercebida, caso a União Federal tenha a confirmação da sua capacidade de constrangimento e até fechamento das loterias estaduais, um grande vencedor da demanda no STF será o jogo ilegal, pois terá menos um agente para se posicionar e disputar o mercado que, segundo a PGR, não comporta as loterias estaduais.

Agora, vamos aguardar os votos dos Ministros na Sessão Plenária da próxima quarta-feira, dia 30/09 e torcer para eles olharem para o século atual e zelarem pelo sistema jus-político pretendido pelo constituinte de 1988, a Constituição cidadã e oposta ao regime autoritário e concentrador do passado, por não mais estar mantida a situação à época então inatual do indigitado decreto-lei 204/67.

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(*) MARCELLO M. CORRÊA é advogado e Mestre em Ciência Política, com mais 20 anos de militância no setor público e passagens por diretorias jurídicas, inclusive a da LOTERJ e PAULO HORN é advogado e Mestre em Direito, com 30 anos atuando no setor público, ex-assessor-chefe do jurídico e Vice-Presidente da LOTERJ de 2007 a 2018; membro das Comissões de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros e da OAB/RJ, membro da Comissão de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento do Conselho Federal da OAB.

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