O compliance e as empresas de apostas de quota fixa no Brasil
Com o advento da Lei 14.790/2023, que dispõe sobre modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa, o Brasil deu um enorme passo para regulamentar um segmento econômico pujante, carente de segurança jurídica e com histórico de criminalidade organizada violenta dominando o mercado informal dessa atividade em diversos entes federativos.
Existem diversos pontos que devem ser abordados nas discussões sobre a juridicidade desse novo segmento, começando sobre uma nova conceituação do “jogo de azar”, haja vista o disposto no art. 2º e seus incisos da lei suso mencionada, antes com dispositivo previsto no § 3º do art. 50 do DL 3688/1941 (LCP), verbis:
Derrogação do art. 50 da LCP.
Art. 50 – Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local. (…)
§ 3º Consideram-se, jogos de azar:
a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. (…)”
Ademais, com o conceito abrangente de jogo com apostas previsto no citado art. 2º da Lei 14790/2023, em especial dos incisos I, VIII e IX, não há mais que se falar em preponderância ou exclusividade da aleatoriedade no resultado do jogo que envolva apostas, senão vejamos:
Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – aposta: ato por meio do qual se coloca determinado valor em risco na expectativa de obtenção de um prêmio;
VIII – jogo on-line: canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras;
IX – evento virtual de jogo on-line: evento, competição ou ato de jogo on-line cujo resultado é desconhecido no momento da aposta;
Assim, haverá a necessidade de outorga para a exploração de todo e qualquer jogo que envolvam apostas, surgindo um novo conceito abrangente denominado “jogos com apostas”, muito mais inclusivo e abrangente que o conceito equivocado de “loteria por quota fixa”, ressalvado o “fantasy sport”, com conceito específico e taxativo previsto no art. 49 da legislação em comento, qual seja:
“(…) Art. 49. Não configura exploração de modalidade lotérica, promoção comercial ou aposta de quota fixa, estando dispensada de autorização do poder público, a atividade de desenvolvimento ou prestação de serviços relacionados ao fantasy sport.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, considera-se fantasy sport o esporte eletrônico em que ocorrem disputas em ambiente virtual, a partir do desempenho de pessoas reais, nas quais:
I – as equipes virtuais sejam formadas de, no mínimo, 2 (duas) pessoas reais, e o desempenho dessas equipes dependa eminentemente de conhecimento, análise estatística, estratégia e habilidades dos jogadores do fantasy sport;
II – as regras sejam preestabelecidas;
III – o valor garantido da premiação independa da quantidade de participantes ou do volume arrecadado com a cobrança das taxas de inscrição; e
IV – os resultados não decorram do resultado ou da atividade isolada de uma única pessoa em competição real.(…)
Destarte, o legislador acerta ao possibilitar que na conceituação da nova atividade econômica de “jogos com apostas” ocorra uma maior abrangência de todos os jogos. Não seria de bom alvitre que qualquer atividade desse citado segmento envolta em grandes premiações, com movimentação financeira acentuada, e com possibilidade de lesões a bens jurídicos ligados à atividade econômica fique à margem de um órgão estatal com a finalidade de regular e atuar em um novo ambiente de “jogos com apostas”, aliado ao fato de trazer maior segurança jurídica aos apostadores e aos empresários que buscam uma atuação viável economicamente e que respeite todas as normas estabelecidas, em especial as concorrenciais e as consumeristas.
De outro giro, como já mencionado, existe também a denominação equivocada de “loteria de quota fixa”, na qual a boa juridicidade ligada ao jogo em outros países faz uma clara distinção entre atividade lotérica, como um jogo denominado “rateado”, para as apostas esportivas, como um jogo denominado “bancado”. Ou seja, enquanto o jogo rateado é aquele em que o volume geral das apostas terá um percentual para os prêmios e um outro percentual para custos e o “lucro”, não havendo possibilidade de o detentor da atuação lotérica ter perda, no jogo “bancado”, incluída as apostas esportivas, o volume geral de apostas pode não ser suficiente, diante das adversidades dos resultados para superar o valor dos prêmios, fazendo com que a “banca” necessariamente tenha o dever de arcar com o “prejuízo” do volume das apostas e os custos ao entorno e garantir os prêmios.
No entanto, o mais importante para o atual cenário será enaltecer o dispositivo normativo que dispõe sobre o relacionamento das futuras entidades da iniciativa privada com eventual outorga de autorização para a operação de jogos de apostas, loteria de cota fixa ou qualquer outra atividade regulada pela nova legislação.
Pois bem, o inciso IV, § 1º do art. 7 traz a figura do diretor da empresa com outorga que deverá ser designado para se “relacionar” com o Ministério da Fazenda, senão vejamos:
“(…) Art. 7º Somente serão elegíveis à autorização para exploração de apostas de quota fixa as pessoas jurídicas constituídas segundo a legislação brasileira, com sede e administração no território nacional, que atenderem às exigências constantes da regulamentação editada pelo Ministério da Fazenda.
§ 1º A regulamentação de que trata o caput deste artigo disporá, pelo menos, sobre: (…)
IV – designação de diretor responsável pelo relacionamento com o Ministério da Fazenda;(…)”
Nessa toada, diante da legislação posta e dentro de uma visão sistêmica de interpretação de normas, em complemento à vontade do legislador, acreditamos que a figura de “diretor responsável” deve se amoldar aos ditames da Lei 12.846/2013 e o decreto que o regulamenta, 11129/22, que dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, isto é, seria de bom alvitre que citado diretor seja a figura do diretor de compliance, integridade ou governança das empresas que buscam outorga no país.
Ora, o conjunto de normas citados impõem diretrizes sólidas e robustas em um programa de integridade na empresa de outorga que pode dificultar, impedir ou ao menos diminuir os riscos de práticas de atos nocivos contra a administração pública, auxiliando em muito na atividade regulatória do novo segmento de jogo de forma efetiva no país.
Ao que tudo indica, o legislador durante a elaboração do normativo em contexto assevera em diversos capítulos a preocupação com integridade e necessidade de rigor na governança corporativa, tendo como exemplo a seção III, mais especificamente no art. 19 e seguintes.
Nunca é demais relembrar alguns escândalos de corrupção em um passado recente do segmento de jogo que envolvem apostas, os quais prejudicaram de forma efetiva o desenvolvimento legiferante e de uma juridicidade capaz de tirar o segmento de jogo com apostas da clandestinidade e ligado à criminalidade violenta.
Aliada à interpretação sistemática citada, alguns questionamentos importantes ficarão sem respostas no momento, haja vista a regulamentação da lei que deve ser efetivada em breve, contudo há de se consignar que o principal desafio dos órgãos será o combate à clandestinidade do ambiente virtual e físico da outorga em testilha, dentre outros desafios regulatórios, tendo em vista a ausência de mão de obra específica de conhecimento do funcionamento empírico de uma atividade com juridicidade transversal, desde o consumerista ao criminal, aliada à ausência de capilaridade de um único órgão central que tenha a ingerência pela fiscalização do segmento.
A título de exemplo, recentemente um site com todo tipo de jogo (cassino, roleta, blackjack, apostas esportivas, dentre outros), que patrocina alguns grandes times de futebol da série A do futebol brasileiro, que se vale de diversos influencers digitais e personalidades públicas com milhões de seguidores em redes sociais para divulgar sem outorga estatal no Brasil, teve por decisão judicial o seu domínio da internet suspenso, fabricando diversos outros domínios dessa mesma empresa que possibilitasse o apostador acessá-lo, retirar prêmios e continuar sua atividade rotineira.
Questiona-se, então, quais seriam os poderes necessários e as ferramentas adequadas ao regulador nacional para que os possuidores de outorga tenham sua competitividade garantida diante da imensidão de formas de se burlar as decisões judiciais e regulamentares? Isto é, há preceito sancionador no país capaz de criminalizar ou vedar de forma efetiva que métodos de pagamentos ou exchanges de criptoativos sejam utilizados por domínios de sites de jogos de azar sediados em outros países com finalidade de impedir ou ao menos permitir a atuação de um mercado competitivo nacional? Uma Secretaria Nacional, com sede em Brasília, teria a capilaridade necessária, Independência política, financeira e poderes suficientes para ao menos transformar a atividade com outorga nacional competitiva diante do tamanha da ilegalidade existente no segmento e das formas transversas de métodos de pagamentos que esses domínios de jogos com apostas se valem?
Ao nosso modesto sentir, a criação de uma agência reguladora, nos moldes das já existentes, tais como ANP, ANA, ANM, traria maior capilaridade e maior autonomia fiscalizatória ao cenário posto, bem como traria poder regulamentar mais efetivo que a Secretaria criada recentemente, ressaltando, por fim, a necessidade de alguns ajustes legislativos, principalmente ligados à criminalização de algumas condutas capazes de ao menos diminuir atividades recorrente do cenário de jogos em plataformas sediadas fora do país rotineiros, as quais, mais cedo ou mais tarde, tornarão o mercado de outorga nacional sem atratividade.
Isto posto, necessário reconhecer o avanço positivo dado à regulamentação do novo segmento de apostas no país, de forma complementar existem outras normas postas ligadas a programas de integridade das empresas de outorga que devem auxiliar o combate aos comportamentos nocivos à administração, reconhecendo, no entanto, as peculiaridades normativas de novas conceituações importantes para delimitação do objeto de outorga e algumas incongruências conceituais ligadas à normatividade do “jogo” em outros países.
Por fim e em apertada síntese, há de se enaltecer o grande desafio da administração na regulamentação de um segmento de juridicidade e atividades empíricas complexas, entender a dificuldade da fiscalização estatal com estrutura central, haja vista a ausência de capilaridade nos diversos rincões do país, enaltecendo a criação de uma agência reguladora com poderes amplos definidos em uma nova legislação e em seus regulamentos capazes de dar maior autonomia política e abarcar a transversalidade desse novo segmento econômico, a criminalização de métodos de pagamentos que prestarem serviços as empresas de exploração de jogos com apostas sem outorga no país, os quais possuem potencial de gerar riquezas, postos de trabalhos e grande tributação ao país.
(*) Bráulio do Carmo Vieira de Melo é Delegado de Polícia Federal da classe especial cedido à Câmara dos Deputados, mestrando em Processo Legislativo Profissional pelo CEFOR, com MBA em Gestão e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas, com especialização em Compliance Anticorrupção e Compliance concorrencial pela Escola Nacional de Administração Pública e especialista em combate aos crimes cibernéticos com cursos no USSS (United States Secret Service) e FBI (Federal Bureau Investigation).