Projeto bilionário de hotéis Hard Rock encolhe, muda de gestão e promete R$ 100 mi para obras
Em dificuldades financeiras e investigado por suspeitas de irregularidades em captações no mercado de capitais, o projeto bilionário de construção de hotéis da Hard Rock no Brasil passou por mudanças na gestão, reduziu os planos de investimentos e “tomou um banho de loja”. A virada reflete um esforço para afastar do negócio problemas como o atraso na entrega das obras e a enxurrada de queixas de clientes, registra reportagem do Estadão.
A VCI, então responsável pela empreitada, mudou de marca e comunicou ao mercado, na última semana, sua aquisição por um grupo de empresários do ramo de multipropriedades, modelo adotado para o avanço da bandeira americana no País, em que hóspedes dividem a propriedade de um mesmo quarto por diferentes períodos de uso. Não há informações sobre os nomes dos compradores ou sobre eventuais valores envolvidos.
Procurada pelo Estadão/Broadcast, a empresa diz se esforçar para honrar seus compromissos com fornecedores, clientes e funcionários e que trabalha para entregar as obras ainda neste ano. O Hard Rock International não respondeu.
Em mensagem a clientes no fim do ano passado, pouco antes do anúncio, a companhia afirmou que o primeiro passo das mudanças será uma injeção de R$ 100 milhões para a acelerar as obras dos dois projetos mais avançados da marca no País: os hotéis da Ilha do Sol, no Paraná, e o de Lagoinha, alvo da multa no Ceará.
Os empreendimentos foram anunciados há mais de seis anos, como parte de um plano da companhia para construir oito hotéis da marca no País, com vendas equivalentes a R$ 8 bilhões. Agora, com a reformulação, a empreitada foi reduzida pela metade: quatro hotéis foram cancelados. Além do Paraná e de Lagoinha, estão previstos empreendimentos apenas em Jericoacoara, também no Ceará, e em São Paulo.
Atrasos
A construção dos dois primeiros hotéis enfrentou seguidos atrasos e, apesar das repetidas tentativas de captação da companhia, ainda está longe de ser finalizada. Em dezembro do ano passado, os responsáveis estimavam precisar ainda de quase de R$ 400 milhões para terminar as obras.
Desde o lançamento do projeto no Brasil, a VCI levantou mais de R$ 400 milhões para transformar o esqueleto de dois hotéis abandonados nas primeiras unidades da marca. Como mostrou o Estadão/Broadcast, os esforços de captações envolveram até uma tentativa de criar uma moeda tokenizada numa operação cripto. No período, a empresa também vendeu cotas para cerca de 17 mil clientes, num total equivalente a mais de R$ 1 bilhão.
A previsão inicial apontava as primeiras entregas dos hotéis para 2020. Mas o ritmo de obras não acompanhou o das captações. Clientes, ex-funcionários e advogados não conseguem entender por que a construção não caminhou no período, apesar dos recursos levantados no mercado e com as vendas.
Na semana passada, o Ministério Público do Ceará multou a companhia em R$ 12 milhões pelos atrasos na entrega da obra — ela tem até dez dias para fazer o pagamento da multa ou apresentar recurso. O grupo responsável pelo projeto vende cotas do empreendimento no Ceará desde 2018 e já soma mais de 10 mil contratos para o hotel de Lagoinha. Segundo o MP, clientes relataram dificuldade no cancelamento dos contratos, tiveram valores retidos e sofreram a aplicação de multas por distrato (cancelamento).
O MP diz que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) prevê que não haja retenção de valores, já que o distrato não se deu por culpa exclusiva do cliente. Procurada, a empresa diz que irá avaliar o tema. Os novos controladores, que assumiram o desenvolvimento dos empreendimentos há menos de um mês, informam que abriram diálogo com a base de clientes e que tentam solucionar os problemas deixados pela antiga desenvolvedora, a VCI. O Hard Rock International não se pronunciou sobre a multa.
Em mensagem enviada a um cliente obtida pelo Estadão/Broadcast, a companhia informa a previsão de entrega no Ceará para o final de 2025. Um consultor do setor hoteleiro ouvido pela reportagem estima que a construção de um empreendimento semelhante costuma demorar de dois anos e meio a três anos para ser finalizado. Isso sem contar o processo de licenciamento. No caso dos hotéis do Ceará e do Paraná, um fator favorável é que a estrutura dos prédios já existe.
De saída
Uma das emissões feitas pela empresa no mercado de capitais, o lançamento de debêntures, entrou no radar das autoridades por suspeita de fraude e hoje é alvo de inquérito pelo Ministério Público Federal. Pela transação, a companhia e o sócio fundador, Samuel Sicchierolli, tiveram de pagar R$ 500 mil à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Ambos também constavam no inquérito do MPF. O sócio da companhia, porém, deixou o negócio na reformulação atual.
As mudanças estão sendo tocadas pela gestora Urca, uma das principais investidoras do projeto. O grupo injetou pouco mais de R$ 100 milhões numa das tentativas recentes feitas pela VCI para levantar recursos, por meio de um Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (Fdic). A transação foi coordenada pelo Itaú BBA.
Frustrados pelos atrasos e seguidas promessas não cumpridas de avanço nas obras, clientes, ex-fornecedores e ex-funcionários estão céticos com as novas mudanças. “Vai continuar exatamente a mesma coisa”, afirma um ex-fornecedor, que prefere não ser identificado. “Isso é uma jogada, uma estratégia de negócios.”
“Parece uma repaginada para tentar vender ainda mais cotas”, afirma um cliente, que prefere não ser identificado. “Eles não entregaram no prazo e se negam a cancelar o que paguei. Meu dinheiro está raptado.”
O que dizem as empresas
Na reformulação, a VCI foi rebatizada de Residence Club. Não está claro como será seu papel diante da centena de processos que a VCI enfrentava na Justiça. No comunicado aos clientes, a empresa disse que conduz um esforço para honrar compromissos com fornecedores, clientes e funcionários e que trabalha para entregar os hotéis ainda em 2024.
Procurada, a Residence Club afirmou que passa por um processo de reestruturação completo, envolvendo todas as áreas da empresa e contando com o apoio da Urca Capital e do Itaú BBA, dois dos principais investidores dos projetos, e do Hard Rock International, futuro operador dos equipamentos turísticos, quando finalizados.
“A companhia, sem negligenciar os problemas da administração anterior, trabalha para não apenas resolvê-los de forma ágil, mas foca na entrega dos hotéis que representarão um marco no turismo brasileiro.”
O Hard Rock International não respondeu aos pedidos de esclarecimentos. A Urca não quis se pronunciar.