Regulação das apostas esportivas no Brasil
O panorama das apostas em eventos esportivos, prevista na legislação brasileira como apostas de quota fixa, vem sendo alvo de constantes debates e alterações. Inicialmente, cabe destacar a Medida Provisória 846/2018, posteriormente convertida na Lei 13.756/2018, que regulamentou a temática no Brasil, tornando legal a realização de apostas em eventos esportivos.
Em que pese a existência de diversas lacunas na Lei 13.756/2018, sua publicação propiciou a segurança necessária para que fosse iniciado um boom de casas de apostas esportivas online no país, com movimentações que atingiram R$ 150 bilhões em 2022, conforme noticiado pelo jornal O Globo, além da presença de uma dessas empresas como patrocinadora master em 60% dos clubes de futebol participantes da Série A brasileira em 2023.
Em contrapartida, o recente escândalo envolvendo diversos atletas das principais divisões do futebol brasileiro, que eram aliciados e recebiam quantias de apostadores para realizarem determinadas ações e fraudarem as apostas, como receberem cartões amarelos ou cometerem pênaltis, abalou a confiança na lisura dos campeonatos e levantou questionamentos a respeito de como compatibilizar as apostas esportivas e o fair play.
É nessa seara que foi editada a MP 1182/2023, em 24 de julho de 2023, alterando diversos aspectos relativos às apostas de quota fixa. Embora tenha sido encarada com muito entusiasmo pela parcela interessada da sociedade, a medida provisória teve um fim frustrante, com seu prazo para votação sendo encerrado sem análise da matéria e a consequente perda de sua eficácia.
Em contrapartida, foi proposto de forma praticamente concomitante no Congresso Nacional o PL 3626/2023, com diversos dispositivos semelhantes às previsões da MP 1182, para tratar do tema da regulação das apostas esportivas. Após breve tramitação, o projeto de lei foi aprovado, sendo convertido na Lei 14.790/2023, sancionada com vetos pelo presidente da República em 30 de dezembro de 2023.
Em sentido paralelo, a movimentação do Ministério da Fazenda sobre as apostas esportivas também merece destaque. Ainda na vigência da MP 1182, o órgão fazendário editou a Portaria 1.330, em 27 de outubro de 2023, com regras suplementares para as empresas interessadas em atuar no setor.
Posteriormente, já após a publicação da Lei 14.790/2023, o Ministério da Fazenda criou a Secretaria de Prêmios e Apostas, responsável pela regulação das apostas de quotas fixas. Uma das primeiras medidas da secretaria foi a publicação da Portaria 615/2024, em 18 de abril de 2024, que trouxe diversos requisitos financeiros para as casas de apostas esportivas.
Dentre esses requisitos, é possível destacar as seguintes obrigações:
⇒ Aportes e retiradas deverão ocorrer somente via Pix, TED, cartões de débito ou pré-pago;
⇒ vedação de concessão de adiantamento, bonificação ou antecipação pelas casas de apostas, ainda que para fins promocionais;
⇒ criação de conta transnacional de titularidade das casas de apostas, com valores separados do seu patrimônio, para aportes, retiradas e recebimento de prêmios dos apostadores; e
⇒ prazo máximo de duas horas para pagamento das apostas e disponibilização de recursos na conta transnacional.
Apesar de seu inegável caráter de avanço na regulamentação do tema, o texto da Lei 14.790/2023 possui alguns aspectos que carecem de maior debate e clareza, que não foram solucionados pela regulamentação da Portaria 654/2024, sob pena de gerarem conflitos e consequências negativas no futuro.
O primeiro deles é a previsão do artigo 7º, §2º da Lei 14.790/2023, que veda a participação do sócio ou acionista controlador de uma casa de apostas esportivas em uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) ou organização esportiva profissional, bem como proíbe a atuação desses indivíduos como dirigentes de uma equipe desportiva brasileira.
Tal dispositivo possui um viés claro de proteção à lisura das competições esportivas, buscando impedir a atuação de um sócio ou acionista de casa de apostas esportivas em uma posição que possa permitir a manipulação de resultados. Todavia, de acordo com a previsão do artigo, essa restrição abarcará apenas a figura específica do sócio ou acionista, não sendo estendida aos seus parentes, o que configura uma lacuna contrária ao objetivo do texto já destacado.
Essa omissão se torna ainda mais questionável quando comparada com a previsão do artigo 26, que estabelece um rol de indivíduos que estarão impedidos de realizar apostas de quota fixa em competições esportivas, como administradores e proprietários de casas de apostas esportivas e pessoas que possam ter influência nos eventos e seus resultados (e.g., árbitros, dirigentes e atletas).
Isso porque o artigo 26, §2º estende essa proibição para incluir também os cônjuges, companheiros e parentes até o segundo grau, tanto em linha reta quanto em linha colateral, dessas figuras.
Desse modo, não se verifica razão para que essa extensão não ocorra também para a hipótese de participação como sócio ou acionista de SAF, entidade esportiva ou atuação como dirigente, tendo em vista a já salientada posição de possível influência desses indivíduos, o que contribuiria para o aumento da proteção ao espírito desportivo das competições.
O segundo aspecto da Lei 14.790/2023 que necessita maiores cuidados é a previsão do artigo 32, que estabelece um prazo de noventa dias para que os apostadores de quota fixa que tenham vencido uma determinada aposta façam a reclamação do seu prêmio, contados a partir da data do evento esportivo, sob pena de recolhimento dos recursos e sua livre utilização pela União.
Isso pois tal dispositivo não atenta para a realidade das operações das contas dos apostadores em casas de apostas eletrônicas. O que habitualmente ocorre é que um apostador, quando obtém um resultado favorável e recebe o prêmio de uma aposta de quota fixa, reutiliza esse valor ou parte dele para novas apostas. Essa é uma mecânica corriqueira tanto para apostadores considerados profissionais quanto recreativos.
Dessa forma, o valor do prêmio não chega a ser retirado da conta na casa de apostas pelo apostador, sendo diretamente reaplicado em uma nova aposta. Contudo, a leitura da redação atual do artigo 32 parece não contemplar esse cenário, prevendo somente que o valor do prêmio deverá ser reclamado no prazo mencionado, o que dá margem ao debate acerca do que será considerado como reclamação desse prêmio.
Caso a utilização do valor do prêmio em uma nova aposta seja considerada como reclamação, não haverá impacto para os apostadores nas situações mencionadas. Por outro lado, se ocorrer reclamação somente mediante a retirada do prêmio da conta na casa de apostas, esses apostadores serão fortemente afetados pela mudança prevista na Lei 14.790/2023.
Esse panorama cria um cenário desfavorável para os apostadores que queiram usar seus ganhos para realizarem novas apostas, que os obrigará a fazer essa retirada do prêmio para depois transferir o valor de volta para a casa de apostas, gerando uma barreira previamente inexistente que impactará as operações.
O texto atual do artigo 32 da Lei 14.790/2023 é incapaz de dirimir essa controvérsia, de maneira que um ajuste no dispositivo, para prever que a utilização do prêmio em uma nova aposta será considerada como reclamação, afastando o recolhimento de tais valores pela União, é uma via aconselhável. Alternativamente, a regulamentação do Ministério da Fazenda poderia resolver esse problema. Infelizmente, a Portaria nº 615/2024 não fez qualquer menção sobre esse ponto específico.
Assim, embora a Lei 14.790/2023 tenha tratado de forma extensiva e com larga qualidade sobre o tema das apostas esportivas, seu texto deixa margem para questões controversas desde o início de sua aplicação, como no que se refere aos dois tópicos supra destacados.
Neste particular, entende-se que seria recomendável a realização de alterações na Lei nº 14.790/2023, para:
⇒ Estender a proibição de participação em SAFs e entidades desportivas ou sua atuação como dirigente desportivo para cônjuges, companheiros e parentes de sócios ou acionistas das casas de apostas esportivas; e
⇒ Disciplinar acerca do tratamento dado para os prêmios reapostados, prevendo que tal movimento seria considerado como reclamação do prêmio e afastaria o seu perdimento em favor da União.
Contudo, tendo em vista a recente sanção da Lei 14.790/2023, bem como o tempo e o capital político que seriam necessários para realizar uma alteração legislativa, é possível que tais aspectos sejam mais facilmente tratados pela via da regulação, com a edição de normas complementares que resolvam as questões elencadas, reduzindo a insegurança e ampliando o potencial econômico do mercado de apostas eletrônicas.
(*) Gustavo Flausino Coelho é sócio do Bastilho Coelho Advogados e professor de Direito Empresarial (IBMEC). Doutor e mestre em Direito Empresarial (UERJ) e graduado em Direito (UFRJ) e Fernando Naegele é advogado do Bastilho Coelho Advogados. Mestre em Direito da Regulação (FGV/RJ), especialista em Advocacia Empresarial (UERJ) e graduado em Direito (IBMEC). Pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade – CTS (FGV/RJ). O artigo foi veiculado no JOTA.Info.