Requerimento de capital de risco em substituição à reserva financeira das bets

Opinião I 17.02.25

Por: Magno José

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Requerimento de capital de risco em substituição à reserva financeira das bets
Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli, Vitória Neffá Lapa e Thiago Signorelli*

A Lei nº 13.756/2018 foi responsável pela criação da modalidade lotérica denominada aposta de quota fixa, que, mediante autorização do Ministério da Fazenda, passou a ser explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial. Em que pese a entrada em vigor da maioria dos dispositivos da Lei nº 13.756/2018 ainda em 2018, foi somente em 2023, a partir da Lei nº 14.790/2023, que a regulamentação desta modalidade lotérica ganhou força. Desde então, foram publicados diversos atos normativos com o objetivo de regulamentar diferentes aspectos das apostas de quota fixa.

Dentre os temas disciplinados neste arcabouço normativo, destaca-se o disposto no artigo 9º da Portaria Normativa SPA/MF nº 615/2024, que estabelece a obrigação de o agente operador de apostas constituir reserva financeira, no valor mínimo de 5 milhões de reais. Importante ressaltar que, conforme determina o § 3º do artigo 9º, essa reserva só poderá ser utilizada quando esgotadas as demais fontes de recursos previstas no plano de contingência do agente operador, e sempre mediante autorização prévia da SPA/MF. O objetivo dessa exigência é garantir o pagamento de prêmios e demais valores devidos aos apostadores na ocorrência de eventos adversos, isto é, eventos que causem perdas à entidade e, consequentemente, representem riscos prudenciais.

Destaque-se, ainda, que, embora a Portaria Normativa SPA/MF nº 615/2024 exija que o agente operador elabore um plano de contingência contendo detalhamento das fontes adicionais de recursos, bem como das responsabilidades e procedimentos a serem adotados nessas situações adversas, não há parâmetros sobre quantas fontes de recursos devem ser previstas e esgotadas antes de o agente operador poder solicitar à SPA/MF a autorização para usar o capital mínimo mantido na reserva financeira.

A exigência de constituição de um capital mínimo destinado a cobrir eventos adversos, que divirjam do conceito de valor esperado, não é novidade nem exclusividade do mercado de apostas de quota fixa. Diferentes instituições do mercado financeiro, como, por exemplo, bancos, seguradoras, sociedades de capitalização, entre outras, já estão sujeitas a requerimentos de capital, diretamente relacionados aos riscos assumidos, cujo objetivo remete à criação de um “colchão” destinado a absorver perdas não esperadas, provocadas por eventos adversos, de modo que, mesmo operando em cenário adverso, essas entidades possam honrar obrigações previamente contraídas e, com isso, reduzir o impacto de efeitos sistêmicos no mercado.

Valor de reserva financeira questionada

Diante desse contexto, questiona-se se a fixação do valor mínimo de 5 milhões de reais, independente do risco assumido por cada entidade e constituído de forma uniforme para todos os agentes operadores de apostas, é um critério adequado para enfrentar as situações de estresse. Isso porque qualquer exigência de capital mínimo deve estar baseada em dois pilares fundamentais: a compreensão dos riscos aos quais as entidades estão submetidas, de modo que seja possível quantificá-los matematicamente; e a partir de tal quantificação, a exigência de um capital que torne ínfima a probabilidade de insolvência em caso de concretização do risco, isto é, em caso de ocorrência da perda causada pelo evento adverso.

A título de exemplo, tomemos o mercado de capitalização, que, por distribuir prêmios calculados com base em múltiplos dos valores pagos pelos subscritores (ou adquirentes dos títulos de capitalização), guarda similaridades com o mercado de apostas de quota fixa. Para esse mercado, a Superintendência de Seguros Privados (Susep), responsável por sua regulação, exige a constituição de um capital baseado no risco de subscrição, requerido principalmente para cobrir o risco de os recursos angariados para custear os prêmios distribuídos por meio de sorteios não serem suficientes para honrá-los.

Considerando as características do mercado de capitalização, no que se refere aos sorteios, identificam-se dois riscos aos quais as sociedades que operam nesse mercado estão sujeitas: a variabilidade dos valores pagos pelos subscritores; e a proporção de títulos não comercializados em relação ao número total de títulos que compõem a série.

Fatores de risco

O primeiro fator de risco decorre da possibilidade de o sorteado ser o indivíduo que realizou o maior pagamento e que, portanto, receberá um prêmio maior (fator de risco comum ao mercado de apostas de quota fixa), ao passo que o segundo está associado ao fato de que, para fins de custeio dos sorteios, os títulos de capitalização não vendidos são tratados como se pertencessem à sociedade de capitalização, que, dessa forma, em caso de contemplação de um título vendido, deve custear os prêmios dos sorteios com recursos próprios.

Com o intuito de tornar os conceitos mais claros, nos concentremos no primeiro fator de risco, comum ao mercado de apostas de quota fixa. Imaginemos uma série hipotética, concebida apenas para fins didáticos, composta por dez títulos e que distribua um único prêmio no valor de três vezes o montante pago pelo subscritor sorteado. Suponhamos, ainda, que todos os títulos dessa série tenham sido vendidos e que os subscritores tenham realizado os seguintes pagamentos: nove pagaram um real e um pagou dez reais.

A partir das regras estabelecidas para a determinação da quota de sorteio no mercado de capitalização, é possível calcular o valor dessa quota para a série hipotética acima descrita, chegando-se ao valor de 30%. Isso significa que, para a nossa série hipotética, a cada um real arrecadado pela sociedade de capitalização, 30 centavos são destinados ao custeio do pagamento dos prêmios dos sorteios.

Eventos adversos para a sociedade de capitalização

Voltando ao exemplo de nossa série hipotética, é fácil concluir que, no que tange ao resultado do único sorteio previsto, há somente dois cenários possíveis: o sorteado é um dos nove subscritores que pagaram um real; ou o sorteado é o subscritor que pagou dez reais. Nesse contexto, é importante observar que os dois cenários possíveis geram resultados opostos para a sociedade de capitalização. No primeiro, a sociedade lucraria com o resultado do sorteio, haja vista que os recursos destinados a custear o prêmio a ser pago (9 x R$ 0,30 + 1 x R$ 3,00 = R$ 5,70) são superiores ao valor do prêmio a ser pago (3 x R$ 1,00 = R$ 3,00). Por outro lado, no segundo cenário, ocorre o contrário, uma vez que o prêmio a ser pago (3 x R$ 10,00 = R$ 30,00) supera (e muito) o valor arrecadado para fins de sorteio (R$ 5,70).

O exemplo acima demonstra a importância de se compreender os riscos aos quais os agentes estão submetidos, sob pena de não serem identificados eventos que podem levar à insolvência da entidade que opera em determinado mercado. É esse motivo que levou a Susep a desenvolver o modelo de requerimento de capital baseado no risco de subscrição, cujo objetivo é justamente exigir a constituição de uma reserva diretamente relacionada a tais riscos. Assim, quanto maior a variabilidade dos pagamentos realizados pelos subscritores e/ou quanto maior a proporção de títulos não vendidos em relação ao tamanho total da série, maior o risco de ocorrência de um evento adverso para a sociedade de capitalização. Por conseguinte, maior é o requerimento de capital.

Nesse contexto, em que pese os enormes avanços na regulamentação do mercado de apostas de quota fixa, observa-se que, caso a pretensão do regulador seja seguir os mesmos princípios para a constituição da reserva financeira, será necessário ajustar a regulamentação atual. Isso porque as regras atuais não estão diretamente alinhadas aos riscos específicos enfrentados pelos agentes operadores desse setor: enquanto a reserva exigida pode ser excessiva para os agentes que operem com jogos de baixo risco, ela também pode ser considerada insuficiente para cobrir os riscos assumidos por operadores que explorem jogos mais arriscados.

Requerimento de capital

Cumpre ressaltar, ainda, que o conceito de requerimento de capital está associado à ocorrência de eventos adversos, que provoquem resultados negativos e divergentes daqueles esperados, para os quais se torna necessária a existência de uma reserva capaz de manter a solvência da entidade que opera em determinado mercado. Assim, deve-se observar que, mesmo para os jogos cujo Return-to-Player (RTP) é inferior a um, ou seja, para os quais é esperado que o valor arrecadado supere o montante distribuído em prêmios, o conceito de capital ainda se aplica. Isso porque o RTP está associado ao conceito de valor esperado, isto é, ao que se espera que ocorra caso o jogo seja repetido infinitas vezes. Dessa forma, o RTP nada mais é do que a razão esperada entre o volume de prêmios distribuídos e o montante arrecadado ao se repetir o jogo infinitas vezes. Em outras palavras, após infinitas rodadas, espera-se que essa razão convirja para o RTP.

Há que se destacar, no entanto, que nada impede que um evento adverso ocorra no meio do caminho, exigindo do agente operador recursos adicionais para honrar suas obrigações. O RTP, portanto, embora relevante, está associado a um resultado esperado e teórico, de modo que, mesmo jogos com RTP inferior a um, não estão imunes a oscilações adversas do risco.

Diante do exposto, é essencial aprofundar a compreensão sobre os riscos inerentes às operações dos agentes de apostas de quota fixa, sob pena de se estabelecer requerimentos de capital desproporcionais — seja por excesso, onerando desnecessariamente os operadores, seja por insuficiência, aumentando o risco de inadimplência. Esse último aspecto é particularmente sensível, considerando que o mercado de apostas é baseado na confiança, de modo que se espera que os prêmios sejam sempre honrados, independentemente do resultado ser favorável ou não ao agente operador.

A possibilidade de default não pode ser vista como um risco isolado, mas sim como um risco sistêmico, capaz de comprometer a credibilidade do setor como um todo. Se a confiança dos apostadores for abalada, até mesmo operadores financeiramente saudáveis podem ser impactados, prejudicando a sustentabilidade do mercado.

(*) Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli é advogada, economista e internacionalista, com especialização em Direito Concorrencial e Econômico pela FGV, mestrado em Finanças no Coppead/UFRJ, doutoranda na Universidade de São Paulo, tendo realizado o programa de Doutorado-Sanduíche como Fulbright scholar junto à George Washington University e, recentemente, finalizado seu LLM em International Business Law com Concentração em Arbitragem Internacional pela Georgetown University, ex-coordenadora-geral antitruste no Cade, ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal, sócia do escritório Buzzi Signorelli e da Leme Consultores e consultora jurídica do Banco Mundial.

Vitória Neffá Lapa é mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), pós-graduada em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV-Rio e membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/RJ e da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ.

Thiago Signorelli é doutor e mestre em Administração, com ênfase em Finanças pela UFRJ e servidor federal na Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda.

O artigo acima foi veiculado pela Revista Consultor Jurídico – CONJUR.

 

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