Gamers pressionam Estados para abocanhar R$ 419 milhões de verba pública de TV e cinema
Desenvolvedores de jogos eletrônicos querem abocanhar R$ 419 milhões da verba pública destinada à área cultural por meio da Lei Paulo Gustavo, legislação que foi criada para socorrer o setor atingido pela crise econômica decorrente da pandemia da covid-19. Estão previstos R$ 2,8 bilhões para o ramo do audiovisual, e os gamers pretendem ficar com até 15% desse valor.
Mensagens de WhatsApp obtidas pelo Estadão revelam uma força-tarefa da cúpula da Abragames, associação que representa o setor de desenvolvimento de jogos eletrônicos, para pressionar gestores públicos e angariar uma maior parte da Lei Paulo Gustavo.
Publicado em maio deste ano, o decreto do governo Lula que regulamenta a Lei Paulo Gustavo já inclui os produtores de jogos como beneficiários. A fatia, no entanto, é definida pelos Estados e municípios, e os gamers têm buscado captar 15% da verba total do audiovisual – também destinada a roteiristas e produtores de vídeos, filmes, séries e documentários.
“No ofício que mandamos pro governo federal fazer recomendações aos Estados e municípios falamos de reservar 15% pra games”, escreveu em 13 de março deste ano Pedro Zambon, pesquisador e consultor na indústria de jogos ligado à Abragames, em um grupo de WhatsApp. O plano, segundo ele, é pedir 15% para cair para 10% no mínimo. A estratégia foi chancelada pelo presidente da associação, Rodrigo Terra. “Cada um aqui precisa participar de alguma forma nos seus Estados para fazermos um coro e bater nos 15% em todo território”, assinalou.
Em 1º de junho, o plano foi reforçado. Uma integrante da diretoria da Abragames, Luiza Guerreiro, avisa no grupo que teria naquele dia uma reunião sobre a Lei Paulo Gustavo com o governo de Santa Catarina. Terra, então, reforça: “15% Lu, briga muito”. Ela, no entanto, avisa que a situação no Estado para obtenção de incentivo pela lei “tá triste”.
Impasse
Enquanto isso, os produtores de jogos temem perder acesso a políticas públicas, como a Lei Paulo Gustavo, caso o projeto de lei (PL) 2.796, que institui um Marco Legal dos Games, seja aprovado no Senado na atual redação.
Isso porque o texto classifica os jogos eletrônicos como “programa de computador”, “dispositivo central” e “software”, deixando de fora o termo “obra audiovisual” – que deixaria claro na legislação brasileira que os gamers também pertencem ao setor cultural e, portanto, podem acessar políticas públicas da área.
Em 2017 a Abragames já tinha tentado incluir os jogos na Lei do Audiovisual, mas não obteve sucesso.
A aprovação do atual texto do Marco Legal pode afetar, até mesmo, na distribuição dos recursos da Lei Paulo Gustavo, como admite Ring, que representa os desenvolvedores de jogos eletrônicos no Rio de Janeiro. “O PL tira os ‘jogos’ do ‘jogo’. E faz com que a gente tenha uma delimitação na nossa área de trabalho, removendo, a exemplo, investimentos importantes que acontecerão a partir da Lei Paulo Gustavo”, afirmou a associação em nota publicado no dia 7 de junho.
Para o presidente da Abragames, Rodrigo Terra, não há risco de se perder acesso aos recursos da Lei Paulo Gustavo, uma vez que já está regulamentada. Mas ele teme que a aprovação afete futuras políticas públicas.
“Na (lei) Paulo Gustavo (o acesso dos games) está regulamentado. Então não é um debate de criar acesso. O acesso já existe. É uma questão de normalização de um entendimento que já está posto”, afirma, em conversa com o Estadão. “A (lei) Paulo Gustavo se encerra em 31 de dezembro de 2023. Então, a gente não tem nenhum tipo de interesse para conseguir 15% da Paulo Gustavo por conta de PL. Os motivos são maiores e mais nobres do que conseguir uma fatia de uma lei que tem início, meio e fim”, acrescenta.
Terra também explicou que nem de longe os gamers fazem parte de um setor que está procurando dependência de dinheiro público. “A gente nasceu e cresceu com as próprias pernas. Agora, a gente, de fato, está olhando para ter um Estado presente”, disse.
Ele também disse que, apesar do pedido de 15% da Lei Paulo Gustavo, não está vendo nenhuma região do País colocar essa porcentagem na distribuição de recursos. “Pelo que andei vendo, a gente viu alíquotas entre 1%, 5%, 8% e 12%. Mas a gente não tem visto nada chegando a 15%”, disse.
Votação
O atual texto do Marco Legal é considerado vago pela Abragames e associadas. O projeto contém apenas seis artigos e não trata, por exemplo, da classificação da atividade econômica do IBGE, tampouco sobre questões tributárias. As entidades dizem também que não foram ouvidas durante a elaboração do projeto, de autoria do deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP).
O PL foi aprovado na Câmara em outubro do ano passado e, na ocasião, a Abragames chegou a elogiar a aprovação do projeto. Agora, mudou de opinião e trabalha para derrubar o atual texto. O Marco Legal ia ser votado na última semana, mas agora vai para a Comissão da Educação no Senado. Caso sejam incluídas mudanças, o texto retornará à Câmara. Se aprovado da maneira em que está, será encaminhado para a sanção presidencial.
A Abragames também é contra a inclusão dos jogos de fantasia (ou fantasy sports), como Cartola e Rei do Pitaco, no texto. As associações acreditam que os jogos de fantasia fazem parte do ramo de apostas esportivas. A Associação Brasileira de Fantasy Sports (ABFS) nega.
Kim Kataguiri explicou ser favorável à inclusão do termo audiovisual no Marco Legal somente se o governo mudar de posição sobre o tema.
“Parlamentares do governo, tanto na Câmara como no Senado, vieram a mim e disseram que não aceitariam a modificação no projeto de lei, no relatório para audiovisual, porque isso geraria uma competição dos recursos que hoje são destinados para artistas – seja Lei Paulo Gustavo, Lei Rouanet, Lei do Audiovisual”, explicou o deputado, em audiência no Senado nessa quarta-feira, 20.
“A informação que tenho é de que o governo é contra considerar audiovisual, se for, acho melhor aprovar do jeito que está. Se o governo mudar de posição e apoiar a definição como audiovisual, não vejo problemas em aprovarmos assim e referendarmos as alterações na Câmara”, acrescentou à reportagem.
O Estadão procurou os ministérios da Cultura, da Fazenda e da Ciência para esclarecerem o posicionamento do governo, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem. (Estadão)