A discriminação e o tratamento desigual

Opinião I 24.09.24

Por: Magno José

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Ex-dirigente da LOTERJ comenta artigo do Gustavo Guimarães
Paulo Horn*

O Projeto de Lei 2277/2024 propõe uma alteração na Lei nº 14.790/2023 para excluir beneficiários de transferências diretas da União, como o Bolsa Família, da participação em apostas de quota fixa. Essa proposta levanta questões sérias sobre discriminação, tratamento desigual e coerência nas justificativas legais oferecidas. Este artigo analisa criticamente as justificativas para essa exclusão, abordando os impactos nos princípios de igualdade e direitos humanos, e explorando as diferenças entre essa exclusão e outras regulamentações, como a proibição do uso de cartões de crédito nos Concursos de Prognósticos e Apostas de Cota Fixa.

1. Princípios da Igualdade e Não Discriminação
O princípio da igualdade, consagrado no artigo 5º da Constituição Federal, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988). A exclusão de beneficiários de programas sociais de atividades econômicas lícitas, como as apostas esportivas, contraria esse princípio ao tratar de forma desigual pessoas que, por sua condição socioeconômica, já enfrentam barreiras significativas. A Constituição e os direitos humanos exigem que todos os cidadãos sejam tratados com igualdade, e políticas que excluem um grupo específico, sem justificativa sólida, violam esse preceito fundamental.

2. Erros nas Justificativas de Discriminação
Generalizações Excessivas: As justificativas para a exclusão de beneficiários do Bolsa Família são muitas vezes baseadas em generalizações que não refletem a realidade de todos os beneficiários. Pressupor que todos os beneficiários são incapazes de gerir suas finanças ou que são mais propensos a desenvolver comportamentos de risco ao participar de apostas é um erro. Generalizações desse tipo desconsideram as diferenças individuais e acabam reforçando estereótipos negativos.

Falta de Evidências: As justificativas não apresentam dados concretos que sustentem a necessidade de exclusão. Sem evidências empíricas de que a participação dos beneficiários em apostas de quota fixa seja prejudicial, a exclusão se torna arbitrária. A falta de estudos ou estatísticas que comprovem os riscos específicos para esse grupo enfraquece a legitimidade da medida.

Ignorar o Contexto Histórico: O histórico de exclusão social e econômica dos beneficiários do Bolsa Família não pode ser ignorado. Políticas que perpetuam a exclusão sem considerar o contexto histórico acabam agravando a situação de vulnerabilidade desses indivíduos. O PL 2277/2024 desconsidera o fato de que muitos beneficiários já enfrentam discriminação e barreiras ao acesso a oportunidades econômicas e entretenimento.

3. Impactos da Discriminação nos Direitos Humanos
A discriminação tem efeitos profundos e duradouros, indo além da simples exclusão de atividades econômicas e de entretenimento. Ela reforça estigmas sociais e cria barreiras adicionais para o desenvolvimento econômico e social dos indivíduos afetados. A exclusão dos beneficiários do Bolsa Família das apostas de cota fixa pode, portanto, limitar ainda mais suas oportunidades de participação econômica e social plena, perpetuando ciclos de pobreza e marginalização.

4. A Importância do Respeito aos Direitos Universais
A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948). Políticas públicas que buscam regular atividades econômicas, como as apostas de cota fixa e outras, devem respeitar esse princípio fundamental, garantindo que todos tenham as mesmas oportunidades de participação. A exclusão de beneficiários do Bolsa Família viola esse princípio ao negar-lhes o direito de participar de uma atividade econômica e de entretenimento legalmente permitida para outros cidadãos.

5. Diferença entre Exclusão dos Beneficiários do Bolsa Família e Proibição do Uso de Cartão de Crédito
Proibição Geral do Uso de Cartão de Crédito: A proibição do uso de cartão de crédito na modalidade lotérica denominada apostas de cota fixa é uma medida de proteção universal que visa prevenir comportamentos financeiros prejudiciais para todos os jogadores. Essa regulamentação busca mitigar os riscos associados ao vício em jogo e garantir que os apostadores utilizem apenas os recursos que realmente possuem, prevenindo abusos financeiros. Ao contrário da exclusão específica dos beneficiários do Bolsa Família, a proibição do uso de cartão de crédito é uma medida de proteção universal que se aplica a todos os indivíduos, independentemente de sua condição socioeconômica.

Natureza Discriminatória da Exclusão: Enquanto a proibição do uso de cartão de crédito é uma medida de proteção financeira e de promoção do jogo responsável, a exclusão dos beneficiários do Bolsa Família das apostas esportivas pode ser vista como uma forma de discriminação que não se justifica claramente. A diferença fundamental reside na natureza das medidas: a proibição do cartão de crédito visa prevenir comportamentos prejudiciais que afetam todos os apostadores, enquanto a exclusão dos beneficiários do Bolsa Família pode ser considerada uma restrição desproporcional e discriminatória que não é fundamentada em evidências claras de risco específico associado a este grupo.

6. Considerações sobre a Exclusão dos Beneficiários do Bolsa Família das Apostas
A proposta do PL 2277/2024, ao excluir beneficiários do Bolsa Família das apostas de quota fixa, pode ser interpretada como uma violação do princípio da igualdade garantido pelo artigo 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988). A liberdade econômica, conforme garantido pelo artigo 170 da Constituição, assegura a todos os cidadãos a oportunidade de participar de atividades econômicas lícitas. Beneficiários do Bolsa Família têm o direito de acessar essas oportunidades, assim como qualquer outro cidadão.

A análise de outras modalidades de loteria, como a Mega-Sena, que não impõem restrições similares, sugere que a exclusão dos beneficiários do Bolsa Família das apostas lícitas pode não ter uma justificativa clara e pode ser considerada injustificada e discriminatória (COSTA, 2022). Além disso, permitir a participação desses cidadãos pode promover sua autonomia financeira e social, enquanto a exclusão pode reforçar estigmas e limitar suas oportunidades.

7. Considerações Finais
As justificativas para a discriminação e o tratamento desigual frequentemente contêm falhas que comprometem os princípios legais e éticos fundamentais. A proposta de exclusão dos beneficiários do Bolsa Família das apostas de quota fixa, conforme o PL 2277/2024, não se sustenta diante dos princípios constitucionais de igualdade e não discriminação. As justificativas oferecidas são frágeis, baseando-se em estereótipos e falta de evidências. Em vez de adotar uma postura excludente, o legislador deve focar em medidas que promovam a educação financeira e o jogo responsável para todos os cidadãos, independentemente de sua condição econômica. Políticas inclusivas e equitativas são essenciais para garantir que todos os brasileiros tenham acesso a oportunidades justas e dignas.

(*) Paulo Horn é sócio fundador do Paiva & Horn Advogados Associados. Presidente da Comissão Especial de Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB/RJ, Membro da Comissão de Direito dos Jogos da OAB/DF e das comissões de Jogos, Apostas e Jogo Responsável da OAB/SP e Especial de Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento, Conselho Federal da OAB Mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Membro da Associação Brasileira de Direito Político e Eleitoral – ABRADEP Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ e do IAB. Exerceu os cargos de diretor administrativo e financeiro, diretor jurídico e vice-presidente da Loteria do Estado do Rio de Janeiro – Loterj. O artigo foi veiculado no site Jus.com.br.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 8 set. 2024.

COSTA, M. L. As políticas públicas e a igualdade de oportunidades no Brasil. Revista de Direito e Sociedade, v. 10, n. 3, p. 123-145, 2022.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/. Acesso em: 8 set. 2024.

 

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