Futebol, apostas e segurança jurídica

Opinião I 08.10.24

Por: Magno José

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Copa, apostas e moedas
Marcelo Trindade*

Até a promulgação, em 2021, da Lei das SAF (Lei 14.193), os clubes de futebol brasileiros eram associações civis. Por isso, não podiam pedir ao Judiciário a reorganização de suas dívidas quando estas superavam a sua capacidade de pagamento. Assim como a falência, os processos de recuperação – extrajudicial e judicial (a antiga concordata) – só estavam à disposição das empresas.

A incapacidade do legislador em lidar com a insolvência das associações terminou no Judiciário, que concedeu a certas associações o direito à recuperação judicial, como se empresas fossem. Com base nesses precedentes, alguns clubes de futebol tentaram o mesmo, e outros planejavam fazê-lo.

Nesse cenário de incerteza, a Lei da SAF incentivou clubes organizados como associações a se transformarem em SAF, com tratamento tributário mais favorecido do que as empresas em geral – próximo aos das associações. Em paralelo, a lei permitiu aos clubes repactuarem suas dívidas em processos de recuperação.

O Congresso partiu do pressuposto de que a preservação dos clubes de futebol, por sua importância social e cultural, justificava criar uma vantagem legal para uma parte de relações privadas – os clubes em relação aos credores. Decisão facilitada pelo fato de que a maioria dos credores não conseguiria mesmo receber.

É que as penhoras de receitas muitas vezes inviabilizavam a atividade dos clubes, atraindo grande atenção da mídia e das torcidas. Movidos pela paixão clubística e por vezes pela desonestidade, dirigentes contratavam profissionais por valores que ambas as partes sabiam que não seriam honrados. E o Judiciário cedia, limitando as penhoras a um certo percentual da receita.

A Lei das SAF deu certo. A classificação do Campeonato Brasileiro nesta terça-feira inclui quatro SAF entre os dez primeiros colocados. O Botafogo faz parte de uma holding – a Eagle, também dona do Lyon, da França – e a do Bahia é de propriedade do City Football Group – dono, entre outros, do Manchester City. A SAF do Cruzeiro, que tinha como controlador o ex-jogador Ronaldo Nazário, já foi vendida para um novo investidor. E mesmo a SAF do Vasco, cujo investidor quebrou, mostra que o modelo empresarial facilita a solução de crises.

Esses investimentos foram feitos na expectativa de receitas. E, entre estas, as de patrocínio nos uniformes são das mais importantes. Sete, entre os dez primeiros colocados do campeonato, têm como principal patrocinador uma empresa de apostas registrada junto às autoridades brasileiras – as chamadas bets.

No Brasil, as apostas esportivas foram descriminalizadas em 2018 (pela Lei 13.756), mas somente legalizadas em 2023 (pela Lei 14.790). A partir de então, e especialmente durante 2024, com a criação da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério Fazenda, a regulamentação foi editada e entra plenamente em vigor a partir de 2025. Entretanto, depois da divulgação de dados sobre o crescimento do volume apostado e os danos que o vício em jogar estaria causando aos brasileiros, o governo estuda a revisão da regulamentação recém-editada.

Ao regulamentar as apostas, o Brasil seguiu a maioria dos países com mercados desenvolvidos, tratando de registro das empresas, informação aos apostadores, apostas que podem ser aceitas, oferta e publicidade. Em comum, além disso, a forte tributação e críticas como as que agora se intensificam por aqui, visando até à proibição das apostas.

É pouco provável que, dentre todos os vícios consentidos, o de jogar seja o único em que a proibição evitará os riscos. Não há, por exemplo, dose de tabaco que não faça mal à saúde, mas não se quer proibir o fumo. Por que com as apostas deve ser diferente?

A proibição do jogo sempre foi difícil de implementar e anda lado a lado com a corrupção de policiais e o aumento da criminalidade. Em um mundo globalizado e na era eletrônica, a dificuldade é ainda maior – tanto que, mesmo antes de 2018, já era possível apostar por aqui. A mudança repentina de regras é, esta sim, um vício brasileiro que podemos evitar.

A alteração da regulamentação das apostas no Brasil, antes mesmo que ela entre inteiramente em vigor, seria mais uma versão da nossa tradicional insegurança jurídica. E, além de não evitar o jogo ilegal, ela afetará um mercado que vem se profissionalizando em benefício de toda a sociedade.

As SAF não têm vida fácil. Têm que enfrentar frequentes tentativas de fazê-las responder por dívidas dos clubes – coisa que a lei expressamente afastou. Com o sucesso, passaram também a lidar com repentinas demandas por “fairplay” financeiro. Só faltava mesmo pôr em risco o patrocínio por bets que cumprem a lei e se registram perante as autoridades. Se o objetivo for melhorar o ambiente para os investimentos privados no Brasil, marcaremos um gol de placa, só que contra.

(*) Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio. Foi diretor e presidente da CVM. O artigo foi veiculado pelo Valor.

 

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