Não há razão para Supremo considerar Lei das Bets inconstitucional, dizem especialistas
Não há razão para que o texto da Lei das Bets (Lei 14.790/2023) seja declarado integralmente inconstitucional, como pedem duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas no Supremo Tribunal Federal no último mês.
Essa avaliação é de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. As ADIs, segundo eles, carregam preocupações legítimas, mas que deveriam ser direcionadas ao Congresso Nacional, a quem caberia cuidar de ampliar a proteção de pessoas vulneráveis contra as apostas.
As ADIs alegam que a Lei das Bets, sancionada em dezembro do ano passado, viola os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além do direito à saúde e do dever do Estado de regulação da ordem econômica.
A primeira delas, a ADI 7.721, é de iniciativa da Confederação Nacional do Comércio (CNC). A entidade destaca na petição inicial o endividamento das famílias com as apostas e, em consequência da menor circulação de renda, a perda sofrida pelo setor varejista, estimada em R$ 117 bilhões ao ano.
Já a ADI 7.723 foi apresentada pelo Partido Solidariedade. A sigla alerta para o comportamento de risco associado ao jogo compulsivo e o prejuízo a programas sociais, fazendo menção ao estudo do Banco Central que identificou que, apenas em agosto, beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões com as bets.
O relator de ambas as ações, ministro Luiz Fux, convocou uma audiência pública sobre o tema para o dia 11 de novembro.
Previsão constitucional
Para Paulo Peixoto, professor de Direito Constitucional do Damásio Educacional, a preocupação com a disseminação das casas de apostas é válida, em virtude dos prejuízos sociais e econômicos causados por elas.
Contudo, do ponto de vista técnico-jurídico, ele diz que a Lei das Bets não padece de vício de inconstitucionalidade, já que a Constituição Federal assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica, salvo nos casos previstos em lei, e determina à União a competência para legislar sobre sorteios, que se assemelham às apostas online.
“Ademais, a própria lei dispõe sobre a responsabilidade, integridade e transparência para as práticas, prevendo proteção aos consumidores, às crianças e adolescentes, à Lei Geral de Proteção de Dados e à própria saúde pública.”
A constitucionalista Vera Chemin lembra que a exploração das apostas de quota fixa, como também são chamadas as bets, foi permitida pela Lei 13.756/2018, e não pela Lei das Bets, que apenas regulou lacunas da norma anterior.
“Nessa direção, a lei em debate cumpre a sua finalidade, a partir do momento em que dispõe sobre todos os requisitos a serem satisfeitos pelas empresas de apostas“, afirma a advogada.
“Não se pode partir do pressuposto simplista de que a íntegra da lei é inconstitucional, até porque ela contém mecanismos que possibilitam um controle e fiscalização das atividades das empresas operadoras, além de viabilizarem o combate à lavagem de dinheiro e, por consequência, às organizações criminosas”.
Jurisprudência do STF
Fernanda Meirelles, responsável pela prática de TMT no FAS Advogados, adota linha parecida: “Ainda que essas ações sejam acolhidas, o efeito prático seria a revogação da regulamentação instituída pela Lei 14.790/2023, enquanto a atividade de apostas permaneceria legalizada. Isso colocaria o Brasil e os consumidores em uma situação mais vulnerável, retornando a um cenário de falta de regulamentação”.
A advogada entende que a exploração das apostas já foi objeto de análise do Supremo no julgamento conjunto da ADI 4.986 e das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 492 e 493. Naquela ocasião, a corte decidiu que a União tem competência privativa para legislar sobre sorteios, mas os estados podem explorá-los.
ADIs pertinentes
Já para Lúcia Helena Polleti Bettini, sócia da banca Tortoro Madureira & Ragazzi Advogados, as ADIs ainda são pertinentes mesmo que não haja inconstitucionalidade no fato de a União regular a matéria.
“Nós temos sempre de pensar a supremacia constitucional e a sua unidade, a harmonização entre as normas. Então uma norma que, em um primeiro momento, se entenda necessária para tirar da ilegalidade as apostas não pode afetar outras dimensões da vida humana, chegar ao ponto de afetar a Constituição em seus preceitos fundamentais.”
Ou seja, ainda que a legalização não seja inconstitucional em si, a ocorrência das apostas não pode deixar de atender aos parâmetros da Carta Magna, sendo necessário impor restrições e também adotar políticas públicas educativas.
“Precisamos ter um olhar sistêmico, para que não passemos só a proibir. Não vamos retirar os problemas com a inconstitucionalidade. Temos de criar meios de fazer com que esses jogos aconteçam com responsabilidade e sem afetação dos públicos vulneráveis, com isso chegamos a essa dinâmica de vontade de Constituição.”
Eduardo Bruzzi, sócio do BBL Advogados, afirma que cabe um debate constitucional sobre certa falta de isonomia entre os operadores das apostas em relação à concessão de licença pelo governo federal.
“Aqueles interessados que solicitaram autorização ao Ministério da Fazenda até o último dia 30 estão habilitados a continuar operando de forma provisória até a obtenção de licença. Por outro lado, os interessados que protocolarem seu pedido a partir do dia 1º de outubro apenas poderão iniciar ou retomar a operação após a concessão da licença.”
Regulação e fiscalização
Paulo Peixoto e Fernanda Meirelles concordam que a regulação tem potencial maior de inibir os efeitos danosos das apostas do que a falta de regras, situação que perdurou desde que as bets foram legalizadas, na gestão de Michel Temer (MDB), em 2018 — passando sem alterações pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) —, até a sanção da Lei das Bets por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Uma vez regulamentado, é dever do poder público garantir a segurança dos apostadores, adotando posturas rígidas para o cadastro e fiscalização das bets, inclusive quanto à publicidade, a fim de coibir condutas abusivas, bem como utilizar parte dos recursos arrecadados com políticas públicas em prol da educação e saúde”, afirma o professor.
“Ao contrário do que é alegado nessas ações, não é a regulamentação que impulsiona o aumento das apostas, mas, sim, o já elevado volume de apostas realizadas por brasileiros que demandou a criação de regras para o setor. A regulamentação estruturada e rigorosa, como a brasileira, não só oferece segurança aos apostadores, mas também impõe às plataformas responsabilidades claras — exatamente o que as ADIs afirmam buscar”, diz a advogada.
Proteção a vulneráveis
Vera Chemin diz que, apesar de a Lei das Bets ser constitucional, a legislação sobre o tema carece de maior proteção a grupos vulneráveis, como idosos e famílias com baixa renda.
Ainda segundo a constitucionalista, essa discussão não deve se pautar unicamente por convicções morais e precisa estar centrada no Legislativo, que tem a competência prevista pela Constituição para alterar as normas, com o apoio institucional dos órgãos que compõem o Ministério da Fazenda, tanto no âmbito federal quanto no estadual.
“A partir do momento em que o Congresso Nacional se mantiver omisso, o tema objeto das ADIs ajuizadas junto ao STF terá a infeliz missão de aumentar ainda mais os conflitos entre um poder político que tem o dever e a competência constitucional para atender aos clamores dos seus eleitores e um poder técnico e apolítico que precisa praticar a autocontenção, a despeito da obrigação de responder às ADIs ajuizadas”, avalia ela.
Mudança de tom
Desde a semana passada, quando vieram à tona os gastos bilionários de beneficiários do Bolsa Família com as bets, foram protocolados apenas na Câmara 32 projetos de lei para endurecer o acesso às casas de apostas, restringir a publicidade desse mercado e combater a ludopatia, a dependência patológica dos jogos de azar.
O governo Lula também prevê um pacote de medidas, que deve incluir a proibição do uso do cartão do Bolsa Família nos jogos. O Ministério da Fazenda, que regula o setor por meio da Secretaria de Prêmios e Apostas, criada em janeiro, anunciou que cerca de dois mil sites irregulares de bets serão retirados do ar.
No ano passado, a regulamentação das bets teve início com a Medida Provisória 1.182/23, cercada de expectativa do governo por causa de um potencial de arrecadação anual sobre o setor entre R$ 6 bilhões e R$ 12 bilhões.
Junto com a MP, foi enviado o PL 3.626/23 à Câmara, que o aprovou em votação simbólica. A versão aprovada passou a incluir outros jogos online, como cassinos, e não apenas as apostas esportivas. O Senado também avalizou a proposta simbolicamente, sem a contabilização individual dos votos, mas com modificações, o que fez o texto voltar à Câmara.
O texto-base do PL que originou a Lei das Bets acabou aprovado pelos deputados com 292 votos favoráveis e 114 contrários. Naquela altura, parte da oposição e a bancada evangélica manifestaram contrariedade à regulamentação.
Discussão no STF
Lúcia Bettini e Eduardo Bruzzi defendem que a prioridade ao Legislativo não exclui a participação do Supremo na discussão.
“É certo que o STF precisará opinar sobre essa eventual inconstitucionalidade da Lei nº 14.790/2023, ainda mais agora que as disputas judiciais da União com loterias estaduais estão em pleno andamento e trazendo insegurança jurídica para o recém-regulado mercado de apostas esportivas brasileiro”, afirma o advogado.
“O ministro Fux fez bem em chamar a audiência pública. Tem de ouvir mesmo todos os interessados e criar mecanismos para pensarmos em uma solução, para reduzir os impactos negativos na vida das pessoas”, diz Lúcia.
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ADI 7.721
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ADI 7.723
(*) Paulo Batistella é repórter da Revista Consultor Jurídico (ConJur)