Portaria de meio de pagamento atinge os objetivos da regulação: proteção do apostador e resguardo do Fisco

A Portaria Normativa SPA/MF nº 615, de 16 de abril de 2024, chacoalhou o mercado de pagamentos no Brasil ao determinar as regras financeiras para a operação regulada das bets no Brasil, a partir de 1º de janeiro de 2025. Enquanto estratégia regulatória, foi uma solução inovadora , mas justamente por sua engenhosidade, não tenha passado esse período de adaptação livre de controvérsias e dúvidas na sua interpretação.
A estratégia trazida define cinco diferentes tipos de conta para o funcionamento do mercado e estabelece regras de como elas podem interagir entre si com a finalidade de resguardar o patrimônio dos apostadores e os interesses do Fisco em evitar sonegação. São elas: Gráfica, Cadastrada, Proprietária, Transacional e Reserva Financeira.
A conta Gráfica não é uma conta de dinheiro, mas sim um registro de saldo de jogo que pode ser aberta pelo próprio operador com o objetivo de registrar apostas, acusar ganhos e receber bônus ou cashbacks, desde que estes não sejam concedidos antes das apostas.
Já a conta Cadastrada, é uma conta de depósito ou de pagamento pré-paga pertencente ao apostador em qualquer instituição autorizada. Esta conta, em especial, precisa ser identificada no aplicativo do operador de apostas, já que realizará aportes e receberá prêmios. A abertura da conta Cadastrada não é responsabilidade do operador de apostas.
A conta Proprietária, por sua vez, é de titularidade do operador de apostas e permite diversas transações, como investir ou pagar por serviços, deter e movimentar os recursos de sua propriedade, executar despesas operacionais, entre outras.
A conta Transacional, também aberta em nome do operador, serve para deter exclusivamente os recursos que lastreiam os créditos de jogo das contas gráficas e o saldo de provisionamento das apostas em aberto. É uma conta com prerrogativas: como o saldo pertence aos apostadores, ele é impenhorável e não constitui patrimônio do operador de apostas.
Por último, a normativa traz a conta de Reserva Financeira, com no mínimo R$ 5 milhões, que podem ficar aplicados em determinados títulos da dívida pública federal, e o saldo só pode ser utilizado pelo operador como último recurso para pagar seus apostadores mediante autorização do regulador.
As contas Cadastrada, Proprietária e Transacional precisam ser abertas em instituições autorizadas pelo Banco Central. Ou seja, entidades autorizadas a operar sob a supervisão regulatória ativa. Já a conta de Reserva Financeira precisa manter saldo diretamente no SELIC (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), onde são registradas a maioria das transações com títulos da dívida pública no Brasil.
Como intérprete de direito, os dados acima nos levam a concluir que a Reserva Financeira pode ser aberta diretamente pelo operador em uma instituição financeira ou, até mesmo, indiretamente, por uma instituição de pagamentos através de sua própria conta de acesso direto ao SELIC, já que a regra não determina exatamente onde essa conta precisa ser aberta e nem quem deve ser o titular direto dos títulos da dívida pública. Um assunto que gera um belo debate.
A Portaria Normativa, então, determina primeiro controles de entrada dos recursos na conta transacional. O dinheiro pode apenas partir de alguma conta Cadastrada previamente identificada no aplicativo do operador de apostas. Assim, é possível garantir a identidade da origem dos recursos, evitando que terceiros paguem pelas apostas realizadas. Entretanto, questiono: esse cadastro pode ser realizado através de uma chave PIX ou são exigidos os dados de agência e conta bancária? As chaves PIX já são mais conhecidas pelos usuários e permitem a rastreabilidade dos recursos. Afinal, quem hoje lembra o número da agência e conta? Então, concluo: seria mais natural que o registro da chave Pix, seja através do primeiro pagamento ou da imputação manual fosse o suficiente. Mais outra pauta de amplo debate.
A Portaria Normativa também determina que a soma dos saldos individuais das contas Gráficas junto com as provisões de apostas em aberto seja sempre equivalente à soma do saldo de todas as contas transacionais do operador. Dessa forma, essa determinação garante três coisas: sempre haverá recursos suficientes para o pagamento de todas as apostas em aberto, impede que o operador tente proteger ativos seus que de outra forma seriam penhorados e impede que o operador tente manter faturamentos na conta transacional para reduzir sua carga tributária. É por esse motivo que o regulador determina um prazo de duas horas para o pagamento de qualquer solicitação de conversão dos saldos de jogo em dinheiro e para o repasse do valor faturado para a conta Proprietária. Já a Reserva Financeira permanece sendo uma única conta por operador, que ficará parada e será utilizada apenas em último caso para proteger o patrimônio dos apostadores.
O mecanismo é engenhoso e revela a estratégia não tão secreta do regulador com essa portaria que, ao tratar explicitamente do processamento de pagamentos, acaba almejando outros objetivos da regulação: a proteção do apostador e o resguardo do Fisco. Como tudo que é novo e complexo, essa estratégia não tem se livrado de controvérsias. Resolvê-las é um desafio do mercado de bets para os próximos meses.
(*) Rafael Edelmann é Diretor de Governança, Riscos e Compliance na OKTO, empresa que oferece soluções de pagamentos digitais para empresas online e varejistas em todo o mundo.