Reforma Tributária erra sobre Fantasy e precisa ser revista de imediato
A reforma tributária chega com três propósitos centrais: (i) simplificar a forma de arrecadação, (ii) reduzir o número de tributos e (iii) não elevar a carga tributária do país. A fim de atender a esses propósitos, o Poder Legislativo tem posto muita energia sobre a tributação do consumo.
O PIS, a COFINS e o IPI, serão substituídos pela CBS. O ICMS e o ISS pelo IBS. A ideia é que a CBS e o IBS sejam tributados a uma alíquota conjunta padrão próxima a 26%.
Ou seja, todo mundo paga a mesma coisa de CBS e IBS, a despeito da atividade desenvolvida. O objetivo é acabar com diferenciações que gerem distorções e complexidades para o sistema tributário nacional.
Mas por questões de política governamental, não ter exceções é inviável. Há setores da economia que requerem um incentivo do Estado para se desenvolver, como é o caso do esporte e do varejo, no que diz respeito a alimentos da cesta básica.
Por essa razão, foram criados regimes diferenciados para alguns setores. Um deles, que aqui nos interessa, foi o setor de prognósticos.
De acordo com o artigo 26, parágrafo 1º, da Lei 8.212/91, “consideram-se concursos de prognósticos todos e quaisquer concursos de sorteio de números, loterias, apostas, inclusive as realizadas em reuniões hípicas nos âmbitos federal, estadual, do Distrito Federal e municipal.”
Em resumo, o dispositivo considera prognóstico o jogo que tiver seu resultado determinado preponderantemente pela sorte, isto é, a um fator alheio à vontade e ingerência do jogador. Assim, modalidades lotéricas, apostas esportivas, jogos online e promoções comerciais pertencem a esse regime diferenciado.
Um regime diferenciado que, diga-se de passagem, não tem o propósito de desonerar a atividade, mas de onera-la, devido aos efeitos colaterais indesejados que ela gera para a sociedade.
Compreensível a preocupação do legislador ao criar esse regime diferenciado para prognósticos. Porém, há um erro grave nesse regime diferenciado destinado aos prognósticos que precisa urgentemente ser reparado pelo Poder Legislativo, a fim de se evitar a dispensa de tratamento inadequado à atividade que não deve integrar o rol das atividades reguladas dentro da categoria dos prognósticos.
O artigo 226 do Projeto de Lei Complementar da Reforma Tributária (PLP nº 68/2024), se equivocou ao inserir a modalidade do Fantasy Sports no mesmo regime dos concursos de prognósticos.
Os Fantasy Sports são esportes, conforme reconhecido expressamente pelo artigo 49, parágrafo único, da Lei 14.790/23: “Fantasy Sport é considerado um esporte eletrônico em que ocorrem disputas em ambiente virtual, a partir do desempenho de pessoas reais”.
Não há dúvidas sobre a natureza da atividade. O Fantasy Sport textualmente é tido como um esporte pela legislação brasileira, assim como acontece em diversas outras jurisdições no mundo.
E mais, o legislador brasileiro ainda foi mais claro ao tratar dessa atividade no caput do mesmo artigo 49 da Lei 14.790/23. Nesse dispositivo tratou-se de explicar que “os Fantasy Sports não configuram exploração de modalidade lotérica, promoção comercial ou aposta de quota fixa”, isto é, não são modalidades de prognósticos.
Logo enquadrar o Fantasy Sport – um esporte (como o próprio nome diz) – como modalidade de prognóstico, revela um erro crasso contido no PLP 68/24, que deve ser corrigido.
As normas de Direito Tributário são normas de sobreposição. Isso quer dizer que as regras de Direito Tributário recaem sobre as relações jurídicas que se formam na vigência das demais normas do ordenamento jurídico. É uma norma que incide sobre as bases já definidas por outras normas.
E, sabendo deste fato, o legislador, por meio do artigo 110 do Código Tributário Nacional (CTN), estabeleceu que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal”.
Assim, uma norma tributária (art. 226 do PLP 68/24) não pode chamar um esporte de prognóstico. Se o Fantasy Sport é esporte, assim ele deve ser tratado, sob pena de afronta direta ao artigo 110 do CTN.
Portanto, ao enquadrar o Fantasy Sport no regime diferenciado dos prognósticos, o artigo 226 do PLP 68/24 incorre em ao menos duas ilegalidades: (i) afronta lei ordinária, ao ignorar que o artigo 49, parágrafo único da Lei 14.790/23, já reconheceu o Fantasy Sport como esporte; e (ii) viola lei complementar, ao pretender alterar conceito de direito privado, em conflito com o artigo 110 do CTN.
Esse problema pode e deve ser resolvido. Basta ao legislador, observando a natureza de esporte do Fantasy Sport já reconhecida pelo parágrafo único do artigo 49 da Lei 14.790/23, retirá-lo do regime diferenciado dos prognósticos e corretamente enquadra-lo no artigo 130 do PLP 68/24, no regime diferenciado dos esportes, do qual é uma modalidade.
O problema é grave, pois a persistir a inclusão dos Fantasy Sports no regime de prognósticos, deve ser gerada uma considerável oneração de um setor que não gera efeitos colaterais próprios do vício causado pelos jogos. Os esportes pelo contrário, são propulsores de saúde. Os esportes eletrônicos em especial desenvolvem capacidade raciocínio, rapidez de reação e coordenação motora fina dentre outras habilidades.
Mas apesar da gravidade do problema detectado, ele pode ser facilmente solucionado. Basta seguir o disposto no artigo 49 capítulo e parágrafo único da Lei 14.790/23, enquadrando o Fantasy Sport no regime diferenciado dos esportes, previsto no artigo 130 do PLP 68/24.
A hora de corrigir o rumo é agora. Somente assim haverá segurança jurídica e evitaremos intermináveis disputas judiciais que podem minar a tão sonhada e esperada Reforma Tributária, imprescindível para o Brasil.
(*) Rafael Marchetti Marcondes é professor de Direito Esportivo, de Entretenimento e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES. MBA em gestão de apostas esportivas pela Universidade de Ohio/EUA. Chief Legal Officer no Rei do Pitaco. Presidente da Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS). Diretor jurídico do Instituto Brasileiro pelo Jogo Responsável (IBJR). Diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte (ABRADIE). O artigo foi publicado no Lei em Campo.