Se é ruim para o vulnerável, é ruim para todo mundo
A ausência de serviços produtivos que incluam os mais vulneráveis no mercado de trabalho, aliada a uma frágil regulação das bets, tem sido muito danosa para a sociedade brasileira. Infelizmente, o Bolsa Família em vez de premiar quem consegue um trabalho, está punindo e desincentivando a busca pela autonomia dos mais vulneráveis.
No atual desenho do programa, no cenário de uma família composta por um casal de adultos, caso um dos membros do casal encontre um emprego de um salário-mínimo acrescido de 50 centavos, o aceite do emprego novo implica a perda completa do Bolsa Família.
Não existe uma regra de transição gradativa e que incentive os beneficiários a se incluírem no mercado de trabalho de forma amigável e com segurança. Idealmente, gostaríamos que os beneficiários que declaram que querem trabalhar e não estão conseguindo recebam um prêmio real por ter conseguido o emprego novo e que tenham tanto um apoio para a qualificação profissional, orientação para ter bons resultados no trabalho e uma saída segura e gradativa do programa.
Ao retirar o Bolsa Família de quem consegue trabalho geramos insegurança que é reforçada por não termos uma rede de cuidado com o trabalhador: para acesso a microcrédito, qualificá-lo profissionalmente, ensinar a valorizar o seu produto de forma a aumentar o seu valor e favorecer sua comercialização, entre outros.
Hoje, transferimos renda, gerando um alívio da pobreza, mas somos abruptos na saída do programa sem cuidarmos da inserção dos beneficiários no mercado de trabalho através de uma transição gradativa e segura. A consequência desse desenho é termos uma redução da taxa de ocupação dos mais vulneráveis, entre os 10% mais pobres, saímos de uma taxa de ocupação de 54% em 2001 para 24% em 2023, uma gigantesca redução.
Um exemplo anedótico é um motorista que fazia frete com um caminhão, teve problemas financeiros e vendeu o caminhão para pagar suas dívidas. Ao perder o veículo, perdeu a sua fonte de renda e agora vive graças ao Bolsa família. Qual foi a resposta do Estado? Entregar o benefício —um grande primeiro passo. No entanto, não apoiamos a elaboração de um novo plano para a compra de outro veículo ou qualquer outro projeto que apoie as habilidades de trabalho que ele já tem como tornar-se motorista de aplicativo, por exemplo. Nos falta o projeto de (re)ascensão social para a classe mais vulnerável.
Em paralelo a essa ausência de projeto de (re)ascensão social, temos um histórico enorme de combater jogo do bicho, cassinos e outras práticas danosas, como o cigarro e a bebida alcoólica. No verso do cigarro é obrigatório que tenha uma foto nada amigável com uma mensagem explicando as consequências ruins e verdadeiras que podem acontecer com quem optar pelo consumo. Onde está a foto com a explicação para as bets? Na contramão do cigarro, temos diversas propagandas e vídeos no YouTube e Instagram, apresentando esses jogos como um caminho para ascender socialmente.
Talvez, ao jogar, os mais vulneráveis estejam revelando um desejo de ir além da transferência de renda: o de ascender. Infelizmente, acabam sendo vítimas da ausência de regulação do setor, especialmente da ausência de regulação da propaganda. Ainda com o agravante dessa população ter raríssimas oportunidades de lazer. A política adequada seria dar clareza sobre o real caminho para ascender no Brasil e de regular o setor de forma a adequar a mensagem à realidade que se impõe. Afinal, algo que é ruim para o pobre é ruim para todo mundo.
(*) Laura Müller Machado é mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. O artigo foi publicado na Folha de S.Paulo.