Contratação direta da Caixa para exploração da Lotex é um drible na regulamentação e um gol contra para os beneficiários legais

Loteria I 09.07.24

Por: Magno José

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Contratação direta da Caixa para exploração da Lotex é um drible na regulamentação e um gol contra para os beneficiários legais
O BNLData detalha o complexo processo da Caixa para terceirizar a operação da loteria instantânea da União e o equivocado modelo adotado que poderá representar prejuízos para o FNSP, FNC, Ministério do Esporte, Seguridade Social e clubes de futebol

Em dezembro de 2023, o Ministério da Fazenda publicou portaria (MF 1.646/2023) autorizando a Caixa Econômica Federal a explorar diretamente a Loteria Instantânea Exclusiva – Lotex, por um período de transição de dois anos, e, após este período o governo daria início a modelagem para exploração indireta da modalidade através de procedimento licitatório.

Após a publicação da normativa, percebeu-se uma movimentação da CAIXA para efetivar a exploração da loteria instantânea em âmbito federal, sem, no entanto, qualquer publicação do respectivo Edital de licitação que nortearia todo o procedimento.

Em reportagens e entrevistas como a ‘Com “bets” e volta da “raspadinha”, Caixa quer 65% do mercado de apostas no país’ veiculada pela CNN Brasil e a ‘Nova raspadinha da Caixa pagará cerca de R$ 1 bilhão em prêmios’ publicada pelo portal Poder 360, o presidente da Caixa, Carlos Vieira e a presidente da Caixa Loterias, Lucíola Vasconcelos manifestaram sobre o potencial de receita que poderia ser arrecada com a exploração deste serviço no prazo de 90 dias para o efetivo início da comercialização dos bilhetes da Lotex.

No entanto, no dia 22 de maio o presidente da Caixa Econômica Federal, Carlos Vieira publicou no Diário Oficial da União – DOU autorização para que a presidente da Caixa Loterias, Lucíola Aor Vasconcelos e a Diretora Executiva da subsidiária, Maria Thereza da Silva Moreira Assunção, além do Superintendente Nacional de Loterias da Caixa, Rodrigo Schekiera Franco dos Santos, participassem de visita técnica às fábricas do consórcio para fornecimento de bilhetes da LOTEX, nas cidades de Pequim e Shenzhen, na China, no período de 23 de maio a 1º de junho, conforme registrado pelo BNLData.

O consórcio a que se refere a publicação do DOU é formado pelas operadoras chinesas Genlot Game Technology e a BZP- Beijing Zhongcai Printing Co.  (joint venture chinesa-francesa China Welfare Lottery, France Des Jeux da França e Berjaya da Malásia). Normalmente, as visitas técnicas a instalações de um fornecedor acontecem após o resultado de uma licitação ou concorrência.

Ou seja, desde a publicação da Portaria transferindo a Lotex para Caixa, o banco realizou procedimento negocial sem observar a legislação vigente no âmbito da delegação de serviços públicos, contrariando os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Neste caso a Caixa poderia estar violando a Constituição Federal; a Portaria que autorizou a exploração da Lotex; o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal; e a Lei 13.756/18 ao prejudicar os beneficiários legais e contribuintes brasileiros com a dinâmica de preços e repasses que será adotada.

A violação da Constituição está no fato da legislação definir que loteria é um serviço público e no artigo 175 define que o Poder Público, “diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

Mesmo sendo uma empresa pública regida pela Lei das Estatais, a Constituição é norma máxima, que não pode ser contrariada por Lei Federal, além da própria Lei 13.303/16 que expressa a obrigação pela realização de licitações por empresas públicas.

Ao invés de respeitar a legislação vigente com a publicação de edital aberto ao público, com procedimento competitivo, Caixa enviou para um grupo restrito de fornecedores de bilhetes de loteria instantânea e serviços um ‘termo de referência’ convidando-os a manifestar formalmente sobre o interesse em participar de futuro processo competitivo, mediante a assinatura de acordo de confidencialidade com o banco. Somente após a publicação no Diário Oficial da União da viagem dos executivos da Caixa Loterias que a coletividade tomou conhecimento da contratação.

Outra distorção do processo é que a Portaria MF nº 1.646/2023 autorizou a exploração em caráter transitório da Lotex de forma direta, ou seja, por seus próprios meios e recursos, mas a possível contratação indireta permitiria que a empresa contratada realizasse praticamente todos os serviços que deveriam ser realizados pelo banco, o que contraria as prestações de serviço de forma direta.

Neste caso a Caixa, não se valeu de nenhuma das duas possibilidades elencadas pela portaria, optando deliberadamente por realizar uma contratação direta com empresa chinesa do mercado de loterias. Ressalte-se que contratação direta e exploração direta são instrumentos distintos, sendo certo que a contratação direta é uma hipótese de inexigibilidade de licitação, o que remonta ao tópico anterior: no caso do serviço público de loterias não há que se falar em inexigibilidade de licitação.

Além disso, o Acórdão do julgamento das ADPF’s 492 e 493 pelo STF, determinou que a exploração do serviço público de loterias: “desde que observado o princípio da licitação, é lícito que o legislador abra a possibilidade de exploração das loterias por meio de concessão ou permissão.”

Uma outra preocupação é com relação aos repasses aos beneficiários legais previstos na Lei 13.756/18. A portaria do Ministério da Fazenda que transferiu a Lotex para a Caixa define que a pasta autorizou que a dinâmica de emissão e distribuição da loteria instantânea se dará de forma análoga à Loteria Federal, gerando uma perigosa distorção para a modalidade e para os beneficiários.

A Loteria Federal conta com dois preços, sendo um preço de plano e outro preço do bilhete ou Preço de Estampa, como previsto na Manual da Caixa. O que se depreende destas definições é que o Preço de Plano (PP) é considerado para fins de distribuição de valores aos beneficiários legais, mas o Preço de Estampa/Preço do Bilhete (PB) diz respeito ao valor pago pelo usuário final. Ora, para onde vai a diferença entre o “PP” e o “PB”?

Ao analisar um bilhete recente da Loteria Federal verificou-se que este é vendido nas casas lotéricas pelo valor de R$ 40,00, no entanto, seu Preço de Plano tem o valor de R$ 32,10. Observe que, segundo as regras criadas pela Caixa, o repasse de valores tem como valor base, justamente o Preço de Plano. Então, para onde são destinados os valores referentes a esta diferença de R$ 7,90 por bilhete?

A lei 13.756/18 define que a destinação do produto lotérico para o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) será obtido por meio da captação de apostas ou da venda de bilhetes de loterias e neste caso a arrecadação deve ser considerada como a captação de apostas ou venda de bilhetes de loteria, ou seja, para fins de distribuição de receita para os beneficiários legais, deveria ser considerada a partir do valor de venda ao apostador, com preço de R$ 40,00 (PB) e não de R$ 32,10.

Considerado este problema oriundo da destinação da Loteria Federal, e considerando que o Ministério da Fazenda determinou que seja adotada a mesma dinâmica para a Loteria Instantânea, é certo que a exploração do serviço público de loterias pela Caixa não conta com a transparência que se espera, além de conflitar com a Lei Federal que justamente trata do tema. A portaria infralegal do Ministério da Fazenda pode estar modificando a lei aprovada pelo Congresso Nacional.

Caso se caracterize o cenário apresentado no caso do plano de premiação da Lotex chega-se à conclusão hipotética que a Caixa irá distribuir aos beneficiários legais em torno de 80% do valor bruto arrecadado e não a sua totalidade. Neste contexto, caso a Caixa explore diretamente a Lotex valendo-se de tal dinâmica, pelo prazo de dois anos, o patrimônio dos beneficiários legais será dilapidado.

No total, a Lotex destinará 16,7% de sua arrecadação, assim distribuídos: 13% para o Fundo Nacional de Segurança Pública; 0,4% para a seguridade social; 0,9% para o Ministério do Esporte; 0,9% para o Fundo Nacional de Cultura e 1,5% para clubes de futebol que cederem os direitos de uso de imagem para divulgação e execução da Lotex.

Buscou-se, no Portal da Transparência, o valor do orçamento anual de cada beneficiário legal da Lotex, mas, para fins argumentativos, usa-se como exemplo o caso do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), que determina um repasse de 13% da arrecadação bruta como previsto na Lei 13.756/18.

Se considerarmos um valor fictício de 500 milhões de bilhetes vendidos ao longo de um ano da exploração direta da Lotex pela Caixa, seguindo o valor e conceito do plano de premiação da Loteria Federal haverá uma diferença de R$ 3.950.000.000,00 e o FNSP deixará de arrecadar R$ 513.000.000,00. Este valor pode corresponder a menos 20% do orçamento do fundo. Além disso, outros beneficiários legais deixarão de arrecadar recursos importantes no caso do mesmo conceito, como Fundo Nacional de Cultura – FNC deixará de arrecadar R$ 355.500.000,00, o Ministério do Esporte R$ 355.500.000,00, a Seguridade Social R$ 158.000.000,00 e clubes de futebol R$ 59.250.000,00.

Tudo indica que a Caixa deve fazer uma revisão no processo de exploração da Lotex para respeitar a legislação aprovada pelo Congresso e as normativas infralegais que tratam do tema. A contratação direta pretendida é ilegal por natureza, ainda que se argumente ser a Caixa uma empresa pública cujas normas contam com contornos híbridos, ora de Direito Público, ora de Direito Privado.

No entanto, por se tratar da exploração de um serviço público, cuja regulamentação reputa-se recente e atualizada, não há que se falar em deliberação negocial da Caixa. Ao contrário, diante de tantos vícios, e diante dos prejuízos financeiros reais imputados aos beneficiários legais e aos apostadores, é cristalino que devem ser tomadas medidas no âmbito do Tribunal de Contas da União e, eventualmente, no Poder Judiciário, impedindo a efetiva contratação viciada de empresa privada, sem a necessária observância aos princípios que norteiam a Administração Pública, quais sejam: o princípio da legalidade, da licitação, da moralidade, da publicidade, da impessoalidade e da isonomia.

Ressalte-se que a forma de precificação, captação e repasses da Lotex, utilizando a dinâmica da Loteria Federal, irá dilapidar o erário em milhões, a cada ano, se considerado o montante de 500 milhões de bilhetes anuais, sendo certo que este número poderá ser ainda maior.

 

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