Dinheiro para ‘bets’ sai da poupança e é desafio ao varejo

O brasileiro tem utilizado os recursos que guarda na poupança para tentar a sorte nas “bets”, as apostas esportivas que invadiram o mercado nos últimos anos. As classes de renda mais baixa (C, D e E) têm participado mais ativamente desses jogos on-line do que a população de maior renda (A e B), mostra o primeiro estudo sobre o tema do Instituto Locomotiva, obtido pelo Valor e publicado na edição desta sexta-feira (26).
Os jogos esportivos on-line foram regulamentados por meio da Lei 14.790/23, sancionada em dezembro, e que permite que empresas privadas operem no segmento.
O aumento nos gastos no setor vem preocupando especialmente o varejo alimentar, cujas vendas são mais dependentes da renda familiar do que de crédito. Na metade do ano passado, varejistas e atacadistas identificaram, em pesquisas internas com consumidores, um crescimento no direcionamento da renda para as “bets”, e a Locomotiva foi contatada para tentar mapear melhor esse movimento, apurou o Valor.
Com base nos números da balança de pagamentos do Banco Central (BC), que trazem cálculos aproximados do montante que passa pelas contas de apostas e jogos on-line, a soma movimenta o equivalente a 8,5% do faturamento anual do setor de supermercados, hipermercados e atacarejos – este é o maior segmento de varejo do país.
As empresas do setor estimam cerca de R$ 60 bilhões (US$ 12 bilhões a US$ 12,5 bilhões) em jogos digitais no ano de 2023, segundo projeção anualizada com base em dados do BC até novembro. E o varejo alimentar físico e digital deve movimentar cerca de R$ 700 bilhões no ano.
De acordo com o levantamento da Locomotiva, 51% dos brasileiros ouvidos pela pesquisa têm utilizado recursos que iriam para a poupança, no fim do mês, nas apostas (é o maior índice da pesquisa) e 48% tem redirecionado o dinheiro gasto em bares, restaurantes e delivery. Outros 45% desviaram de diferentes tipos de jogos (como loterias) e 41% da compra de roupas e acessórios (eram questões de múltipla escolha aos entrevistados).
Quase metade (48%) diz que se parasse de apostar, usaria os recursos para reforçar a poupança.
Foram ouvidas 1.007 pessoas, acima de 18 anos, em 203 cidades, entre os dias 2 e 11 de dezembro, e a amostra foi ponderada segundo perfil da população brasileira no IBGE. A margem de erro é de 3,1 pontos.
Na avaliação de Renato Meirelles, presidente da Locomotiva, empresa de pesquisas, as “bets” conseguiram um “feito” ao unir num único produto vários aspectos que atraem a audiência.
“A exposição na mídia têm surtido efeito na atração do usuário”, Jomar Rodrigues.
“Quem aposta acredita que está dando uma chance ao seu conhecimento, a tudo que ele entende de futebol ou de algum outro esporte. O consumidor não acredita que está só fazendo uma ‘fezinha’, mas que tem a ver com o seu talento e com a informação que ele tem”, diz. “Afinal todo brasileiro acredita que um técnico de futebol”.
Além disso, ainda pesa o fato de ser um produto que explora o apelo da “gamificação”, que envolvem dinâmicas lúdicas, com foco no entretenimento, gerando engajamento, e ainda há o próprio formato do serviço. “Você pode jogar durante a partida, em tempo real, assistindo o jogo com o celular na mão. São muitos estímulos envolvidos”, afirma.
Pelos dados, 29% da população adulta já fez apostas em sites e “apps” especializados, número que representa 44,8 milhões de pessoas nessa faixa etária – reflexo, em parte, do forte investimento em mídia que as marcas têm feito em veículos tradicionais e digitais, além da escalada nos patrocínios dos times de futebol.
A taxa supera atividades como bingo, caça-níqueis e poker, e quase empata com as apostas informais (como os bolões), com 31%.
Ao se considerar aqueles declarados usuários, quase 70% joga pelo menos uma vez ao mês – equivalente a quase 31 milhões de adultos. Um a cada quatro testa a sorte mais de uma vez por semana ou todos os dias da semana.
Entre as classes sociais, 30% daqueles pertencentes às camadas C, D e E já jogou ou costuma jogar nas “bets” de esportes – só perde para loteria federal e jogo do bicho. Na população A e B, esse índice é menor, de 24%, ficando apenas em quinto lugar entre as escolhas.
“Temos reforçado que o uso de reservas de emergência, como da poupança, para essas apostas é algo de altíssimo risco, pela elevada probabilidade de perda de todo o capital colocado, o que acaba pesando no fim do mês no orçamento familiar”, diz Hugo Alex, planejador financeiro pela Associação Brasileira de Planejamento Financeiro.
“É importante investir com finalidade específica, e não deixar que o jogo afete o compromisso com o investimento”, afirma o professor Jomar Miranda Rodrigues, do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da UnB.
Ainda pela pesquisa, a maioria daqueles que ganha algum dinheiro reinveste novamente nos sites e aplicativos. Dois terços dos entrevistados admitem que voltam a gastar nos sites e “apps” tudo ou parte do que acumularam. Apenas 34% dizem que sacam todo o montante obtido.
Meirelles ressalta que os valores desembolsados não são tão elevados, então ele não vê uma espiral de endividamento, mas um redirecionamento de gastos.
Além disso, as principais empresas de apostas têm esclarecimentos em seus sites sobre a necessidade do jogo responsável, e fazem alertas frequentes aos usuários sobre o uso consciente.
O Valor contatou a bet365, a Sports.bet e a Esportes da Sorte, entre as principais empresas do setor, para comentar a pesquisa, mas as plataformas não se manifestaram até o fechamento desta edição.
“Pouco mais de 50% das pessoas apostam de R$ 1 a R$ 30, então não vimos nas análises qualitativas um movimento de se endividar para continuar jogando”, diz Meirelles. Do total de entrevistados, 37% desembolsa acima de R$ 45.
Ainda há sinais de que a forte onda de gastos publicitários parece estar dando resultado para as empresas do segmento: 48% das pessoas ouvidas começou a jogar nos últimos seis meses.
Segundo dados da Kantar Ibope Media, eram 12 casas de apostas on-line na lista dos 300 maiores anunciantes do país em 2022 – em 2018, entrou apenas uma.
Apenas 17% dos usuários ouvidos fez os primeiros jogos no intervalo de um a dois anos (após o início de 2022). No período, já havia autorização para a entrada de empresas estrangeiras no Brasil – a lei foi aprovada durante o governo Michel Temer (MDB).
“Não há dúvida que os benefícios dados para trazer mais usuários e a exposição na mídia têm surtido efeito”, afirma Rodrigues.
Segundo levantamento do Valor, mais de 90% dos times da série A do Campeonato Brasileiro é patrocinado por alguma “bet”, e elas ocuparam o vácuo deixado por outros anunciantes nesses torneios, como marcas de eletrônicos e do setor de alimentos.
O cenário de uso de renda das famílias nos jogos, num ambiente de maior comprometimento dos salários com dívidas após a pandemia, e retomada ainda gradual no emprego, fez acender sinal de atenção do comércio em relação a esses gastos.
“Pelas contas que fizemos, as ‘bets’ estariam chegando a até 20% do mercado alimentar brasileiro em alguns anos. Acaba virando uma espécie de ‘competidor’ na renda disponível para a gente, e que ainda está fora do radar de muita empresa”, diz o diretor de uma atacadista, que buscou a Locomotiva para obter mais dados.
O levantamento do instituto foi patrocinado pela própria empresa de pesquisas, que irá apresentar os dados ao clientes, após um aumento da demanda sobre o tema.
Números da balança de pagamentos do BC mostram que, de janeiro a novembro, foram cerca de US$ 11 bilhões em valores gastos em sites de apostas e na taxa de serviço paga às plataformas. Ao se considerar a média registrada nos meses de dezembro, acrescida do crescimento anual, esse valor deve chegar a pouco mais de US$ 12 bilhões em 2023.
Em dezembro, o Senado Federal aprovou a regulamentação e as empresas passam a ser obrigadas a pagar uma taxa de 12% sobre seu faturamento ao governo. Os apostadores terão de arcar com imposto de 15% sobre o prêmios recebido, quando o valor recebido ficar acima de R$ 2.112.