Especial UOL Notícias: O mecanismo das apostas

Destaque I 29.03.18

Por: Magno José

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Existe uma zona legal cinzenta de apostas que move uma máfia para manipulação de resultados no futebol

Um decreto de 1941 diz que promover e praticar jogos de azar no Brasil é uma contravenção penal*. É menos grave do que um crime, mas ainda é um delito. Em 2015, uma nova redação do decreto previu multa de até R$ 200 mil para quem se envolver em apostas pela internet. Na letra fria da lei, apostar sobre o resultado de eventos esportivos é proibido no Brasil.

No mundo real, a história é diferente. Segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas, existem cerca de 500 sites espalhados pelo mundo oferecendo apostas em dinheiro. Destes, cerca de 10% tem versão em português, especialmente para o público brasileiro.

Como os servidores da maioria deles estão em território internacional, sob leis de países como Malta, Gibraltar e Costa Rica, todos com uma política fiscal mais generosa e onde o jogo é legalizado, brasileiros podem apostar à vontade. Na teoria, apesar de partirem de computadores no Brasil, essas apostas não são feitas em território nacional.

Essa área cinzenta do ponto de vista legal movimenta, no Brasil, cerca de R$ 4 bilhões anualmente em apostas (em dados de observadores do mercado). Por um lado, esses sites contemplam quem quer se divertir enquanto acompanha uma partida. Por outro, são alvo de uma rede que tenta ganhar dinheiro fácil manipulando resultados de jogos reais. A seguir, o UOL Esporte mostra como funciona esse mecanismo criminoso que coloca em cheque a credibilidade do futebol brasileiro.

(*) Jogos de azar são aqueles em que o jogador depende da sorte para ganhar, como loterias. No Brasil, as únicas loterias legais são as promovidas pela Caixa Econômica Federal. A lei permite ainda outros tipos de aposta, como corridas de cavalo em hipódromos legalizados.

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O Decreto

Incorre na pena de multa, de R$ 2.000,00 a R$ 200.000,00, quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador. (Art. 50 da Lei das Contravenções Penais. Redação dada pela Lei nº 13.155, de 2015)

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Clubes que atrasam salários são preferidos de manipuladores

Horas antes de entrar em campo contra o Londrina, os jogadores do Rio Branco decidiram não viajar para o local do confronto, válido pela divisão principal do Campeonato Paranaense. A razão? Com uma folha de pagamento de cerca de R$ 80 mil, o clube tinha salários atrasados por dois meses. A partida acabou acontecendo e o Rio Branco perdeu por 4 a 1. Mais tarde, o lateral Thiaguinho admitiu que havia sido abordado por um apostador que ofereceu R$ 5 mil para atletas que topassem entregar o jogo. A partida está sob suspeita de manipulação.

Clubes menores que convivem com problemas financeiros são o alvo preferencial da máfia de apostas. “Falta de pagamento, de comida, afastamento de jogador… Os dirigentes largam na mão de um suposto investidor, e acontecem todas essas coisas”, relata Mauro Costa, do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo. Costa é responsável pela área de prevenção e investigação de manipulação de resultados no sindicato, e parte de um pool entre a Interpol, a Fifa e o FIFPro, o sindicato internacional dos jogadores.

Apesar de ser possível apostar em praticamente qualquer evento esportivo no mundo, as quadrilhas de fraudadores focam em campeonatos de menor expressão, longe dos olhos da imprensa e onde os atletas recebem menos. O dinheiro movimentado nesse mercado é altíssimo: “A Interpol considera essa prática mais complicada que a dos traficantes, por que a manipulação deixa o [jogador] na mão dos caras para sempre. Se entrou nessa, não sai. Uma vez manipulado, já foi”, comenta.

Resistir é o mais difícil, porque quando põe o dinheiro na mesa, qualquer ser humano treme.”

O sindicato paulista recebeu reclamações sobre dez clubes com salários atrasados apenas durante o Paulistão 2018. Os campeonatos mais denunciados por jogadores por manipulação de resultados estão no Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Bahia e Rio Grande do Sul.

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Cinco partidas sob suspeita em São Paulo

O mais recente caso de suposta manipulação de resultados que virou notícia no futebol brasileiro envolve cinco partidas do União Barbarense, clube do interior paulista que disputa a terceira divisão estadual. Dirigentes da equipe registraram um boletim de ocorrência no último domingo (25) acusando oito jogadores e um treinador de aceitarem suborno em um esquema de apostas pela internet – de acordo com o que foi informado às autoridades, um único jogo, contra a Matonense, rendeu R$ 40 mil.

Claudemir Peixoto, técnico apontado pelo clube como cabeça do esquema, nega as acusações. Os oito jogadores relacionados também. O União Barbarense diz que possui uma gravação comprovando a denúncia e procurou a Federação Paulista de Futebol para investigar junto com o Ministério Público e a polícia. O clube, que acabou rebaixado, quer solicitar um mandado de segurança para evitar a queda. Os jogadores que se dizem inocentes serão procurados pelo sindicato de atletas e também pela federação paulista para se explicarem.

Quem permaneceu no elenco até o fim da A3 foi orientado pelo departamento jurídico do clube a evitar manifestações públicas. A investigação ainda está em fase inicial. Em campo, o União Barbarense teve quatro vitórias, cinco empates e dez derrotas que culminaram na 17ª colocação final.

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Como eles fazem: ouça o áudio no UOL.

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Caixa deixou de oferecer apostas em times pequenos

Em uma tentativa de não se envolver em jogos manipulados, a Caixa Econômica Federal determinou internamente que a programação da Loteca – a loteria esportiva – não tivesse mais jogos de campeonatos de base ou mesmo de Estaduais secundários, sem a presença dos clubes de massa ou que não estivessem em momentos decisivos, como a final do torneio.

Para substituir esses jogos, a Caixa voltou a usar os campeonatos europeus. Segundo apurou o UOL Esporte, o banco soube das denúncias de manipulação de resultados e temeu ser envolvida direta ou indiretamente em algum escândalo que pudesse surgir nessas competições. “Se algo acontece na Europa, não é problema nosso”, disse uma fonte que pediu para não ser identificada.

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Robôs e humanos se juntam para combater fraude

A empresa suíça SportRadar foi criada para oferecer dados de competições esportivas aos principais sites de apostas do mundo. Em um acordo com essas páginas, passaram a coletar também informações sobre as apostas. Essas informações permitiram criar um algoritmo que, hoje, consegue monitorar o comportamento dos apostadores online.

É possível apostar sobre quase tudo. Do resultado até se as duas equipes vão marcar, quanto estará o placar no primeiro tempo, quantidade de gols total, diferença no placar ou número de escanteios, por exemplo. Se um determinado jogo recebe uma onda de aposta fora do comum, em qualquer destes aspectos, os robôs virtuais avisam a SportRadar, que aciona observadores humanos para analisar as circunstâncias. Se houver indícios de tentativa de fraude, a empresa aciona as autoridades responsáveis.

“Nosso sistema de monitoramento consegue perceber uma variação fora do padrão nos sites de aposta”, disse o executivo Ricardo N.M. “Complementamos esse alarme com uma análise humana do que aconteceu em campo. Só a parte robótica da coisa é insuficiente, assim como só a parte humana.”

Na última terça-feira (27), a federação paulista, que criou um comitê de integridade para analisar denúncias de jogo sujo, encaminhou ao Ministério Público e à Polícia Civil informações de cinco partidas do campeonato paulista (Séries A2 e A3) suspeitas de terem sido manipuladas. Hoje, além de campeonatos em São Paulo, a SportRadar tem parcerias com a Conmebol, Fifa e duas federações colombianas.

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Sindicato faz palestra para jogadores resistirem à tentação

Desde 2015, o sindicato de atletas de São Paulo promove palestras para conscientizar jovens que disputam divisões ou categorias inferiores em relação aos perigos gerados pelo envolvimento em manipulação de resultados. O conteúdo já foi ministrado a atletas de 80 clubes e é intitulado “Reconhecer, Resistir e Denunciar”.

A ideia da palestra é que os jogadores entendam como se reconhece um manipulador, a importância de dizer não, apesar das tentadoras ofertas financeiras, e como dar queixa. Um caso registrado em 2018 mostra que os jogadores agora dispõem de mais recursos para denúncias: dois garotos do Estanciano, clube sergipano que disputou a Copa São Paulo de Juniores, gravaram uma conversa com dois homens que se apresentaram como ex-jogadores de futebol e eram representantes de um grupo chinês de apostas. A proposta era de R$ 2 mil para cada atleta que topasse “construir” o resultado de uma partida.

A gravação chegou a dirigentes do clube, à imprensa, a grupos de amigos e à Federação Paulista. O conteúdo vazou, mas os responsáveis pela oferta não foram detidos porque deixaram o hotel da cidade de Itapira a tempo.

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Regulamentação combate ou favorece criminalidade?

Defensores da regulamentação das apostas dizem que o dinheiro de impostos do setor poderia ajudar a criar órgãos fiscalizadores mais eficientes contra fraude. Mas quem é contra afirma que legalizar apostas aumentaria o campo de atuação do crime organizado.

Desde os anos 90, parlamentares tentam aprovar projetos de lei para regulamentar o jogo. No começo de março, uma das propostas, um projeto de lei do senador Ciro Nogueira (PP-PI), foi rejeitado por 13 dos 15 membros da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O senador Eunício Oliveira (MDP-CE) já se mostrou contrário a leva-lo a votação no plenário, o que significa que o tema não deve voltar à pauta nesta legislatura.

Mesmo em um mercado desregulado, as empresas de apostas internacionais estão presentes no dia a dia do brasileiro. O investimento em propaganda é pesado e inclui repetitivos comerciais nos intervalos da programação esportiva. Para não ir de encontro às leis brasileiras, essas empresas recorrem a artifícios curiosos: a palavra “aposta” é substituída por “palpite” e os sites se declaram de entretenimento, não de apostas.

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As visões divergentes sobre a legalização

“A única forma de combater o jogo ilegal é com jogo legal. A manipulação de jogos é uma realidade no Brasil há muito tempo. O problema é fingir que esse fenômeno não existe. Com o jogo regulamentado, você consegue monitorar o padrão das apostas, e verificar indícios de manipulação antes de acontecer. Assim as pessoas envolvidas teriam mais receio de manipular porque a sociedade estará de olho.

Pedro Trengouse, advogado e professor da Faculdade Getúlio Vargas

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“O jogo nunca vem sozinho. Sempre vem acompanhado do crime organizado, corrupção, lavagem de dinheiro, drogas, exploração sexual, violência doméstica, separações, endividamento, agiotagem, a destruição da vida pessoal de quem aposta. O jogo não gera riqueza, o dinheiro sai de uma parte da sociedade e vai pra outra. A pessoa deixa de gastar em cinema, em restaurante e gasta em jogo. Por causa da legislação que proíbe o financiamento privado de campanha, a regulamentação é uma maneira de os políticos conseguirem financiar suas campanhas”

Paulo Fernando Melo, presidente do movimento Brasil Sem Azar

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“Sempre vai haver tentativa de fraude no esporte, mesmo em mercados regulados. No mercado não regulado isso é ainda mais agressivo porque você não tem uma legislação para coibir. Se tem, é mais fácil identificar as tentativas de fraude. Quando acende a luz vermelha dos sites, bloqueiam as apostas, suspendem o jogo e abre-se uma investigação. Isso só acontece com essa velocidade nos mercados que são legalizados, como se viu recentemente em Portugal. Queremos que o jogo venha à luz do sol no Brasil porque a luz do sol é o melhor detergente.”

Magno José, presidente do Instituto Jogo Legal

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Ministério Público: jogos e apostas aumentam lavagem de dinheiro

O Ministério Público Federal assumiu uma posição contrária à regulamentação das apostas e jogos de azar no Brasil. Em uma nota técnica publicada no final do ano passado, a Procuradoria disse que a legalização dos jogos vai ao encontro dos interesses de criminosos e que aumentaria a incidência de crimes.

Os procuradores também disseram que o país não tem condições de fiscalizar a atividade e que o projeto do senador Ciro Nogueira “não cria mecanismos de controle efetivo da lavagem de dinheiro e da sonegação fiscal. Ao contrário, cria novos e poderosos mecanismos para a lavagem de dinheiro”.

“A enorme quantidade de bingos e cassinos cuja abertura é estimulada pelo PLS 186/2014 está em evidente descompasso com a realidade dos órgãos nacionais de controle, ainda que estes fossem dotados de estrutura de fiscalização de primeiro mundo”, disse o MPF.

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Jogo legalizado é norma no mundo. Manipulação também

O Brasil sofre com tentativas de manipulação de resultados há décadas. Em 2005, a descoberta do escândalo da “máfia do apito” provocou a anulação de onze partidas do Brasileiro manipuladas pelo árbitro Edilson Pereira da Silva para favorecer apostadores. Os jogos foram remarcados e o Corinthians acabou sendo campeão após ganhar pontos em jogos que havia perdido.

Países em que o jogo é regularizado também sofrem. Com longo histórico de legalidade desse mercado, EUA e países europeus tem mecanismo para coibir jogos arranjados. Nem sempre é suficiente: em 2013, por exemplo, um escândalo envolveu cerca de 380 partidas de futebol em três continentes. Os mentores do esquema, segundo as investigações, formavam uma rede asiática de apostadores.

Na Inglaterra, as apostas estão enraizadas na cultura futebolística e não é raro encontrar jogadores e técnicos que também apostam. A solução da federação local foi a criação de uma série de regras para limitar essa participação.

O jogo legalizado é uma realidade comum no mundo: um estudo do Instituto Brasileiro Jogo Legal, que faz lobby pela regulamentação, concluiu que, entre os 193 países da ONU, cerca de 75% têm o jogo legalizado. O Brasil estaria entre os 24% que não legalizaram. (UOL Notícias Especial – Esporte – Adriano Wilkson, Gabriel Carneiro e Napoleão de Almeida Do UOL, em São Paulo)

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