Fraude e apostas esportivas: consumação do prejuízo e engano jurídico-penalmente relevante

Opinião I 24.04.25

Por: Magno José

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Fraude e apostas esportivas: consumação do prejuízo e engano jurídico-penalmente relevante
José Roberto Macri Júnior*

A aposta acerca de um evento esportivo pode ser interpretada como um negócio de caráter aleatório, no qual as partes, implicitamente, afirmam desconhecer e não controlar ou manipular o resultado de um específico evento [1]. Em outras palavras: as partes devem respeitar a incerteza, a aleatoriedade característica do negócio [2].

Reduzir ou aumentar artificialmente as probabilidades de um evento esportivo, nesse contexto, pode configurar um comportamento típico de estelionato. Contudo, antes de se declarar a existência de uma fraude (consumada), algumas questões devem ser analisadas.

Vítima da fraude

Desde os primeiros estudos de vitimologia, com o estabelecimento de tipologias vitimais, as vítimas de estelionato têm recebido reprovações morais, pois, dizia-se, em muitas ocasiões, sofreriam prejuízos em razão de sua ganância desmedida [3]. Embora os juízos de valor, em grande medida [4], já não tenham reflexos dogmáticos no estelionato, deve-se reconhecer que, ao se conferir uma ampla margem de liberdade negocial aos indivíduos, como contrapartida, requer-se algum nível de autorresponsabilidade [5].

O estelionato pressupõe certo nível de interação entre as partes: somente se configura o delito com um ato de disposição patrimonial do enganado. E é precisamente por causa deste caráter relacional do estelionato que neste tipo penal avalia-se como o comportamento (imprudente, por exemplo) da vítima pode influenciar na interpretação jurídica do comportamento do autor [6].

Com efeito, parte da doutrina entende que, ao menos para fins de estelionato, o princípio da subsidiariedade ganha novos contornos. Para além da não intervenção penal, nos casos em que outros ramos do direito sejam suficientes para garantir proteção ao bem jurídico, também seria dispensada a tutela penal para as hipóteses em que a própria vítima, tendo meios de proteger seu patrimônio, não o faz [7].

A valoração normativa do comportamento da vítima e do (não) uso de seus meios de defesa pode implicar, por um lado, a não imputação do prejuízo ao autor da fraude, ou, por outro, a atipicidade do meio fraudulento [8].

Responsabilidade pelo prejuízo patrimonial e engano típico

Em delitos de lesão, é possível que, entre a conduta criminosa e o resultado lesivo, ocorra uma intervenção de terceiro; tal intervenção pode alterar a atribuição de responsabilidade pelo evento danoso. Ilustrativamente: A envenena o café de B; contudo, antes que o veneno faça efeito, C mata B com uma arma. Nessa hipótese, A responderia apenas por tentativa de homicídio, em razão da superveniência de causa independente (artigo 13, §1º, Código Penal).

A estrutura mais básica do estelionato pode ser esquematizada como um comportamento enganoso provocador de um erro, o qual, por sua vez, motiva uma disposição patrimonial prejudicial. Aqui, também seria possível, no intervalo entre a conduta fraudulenta e o prejuízo, pensar-se em uma intervenção capaz de impedir a atribuição do dano ao agente que engana. Entretanto, no estelionato, referida intervenção pode ser realizada pela própria vítima.

Aqui se trata, por exemplo, das hipóteses em que a vítima tenha dúvidas concretas sobre o negócio, as quais podem versar sobre, e.g., o caráter contraditório das afirmações do autor, a incompatibilidade entre o afirmado pelo autor e outras informações das quais a vítima dispõe, ou mesmo de alguma característica específica do autor. Nos casos de dúvidas concretas, sem grande esforço, a vítima poderia verificar a informação suspeita.

Não o fazendo, em alguma medida, desconfigura-se o elemento típico “erro”, tornando-se a vítima responsável por seu ato de disposição patrimonial, e evitando, consequentemente, o resultado típico. Em termos práticos: nas hipóteses em que, apesar da existência de dúvidas concretas acerca do negócio, a vítima realiza a disposição patrimonial, o autor da fraude somente responderia por tentativa de estelionato [9].

Mais amplamente, pode-se dizer que existe uma exigência normativa de que a vítima adote, na medida do possível, mecanismos de autoproteção. Dessa forma, não se puniria por estelionato consumado os casos em que, a despeito da existência de um engano idôneo, seja possível atribuir o prejuízo à falta de diligência exigível da vítima. Seriam os casos de excessiva comodidade por parte de quem realiza a disposição patrimonial, sem adotar uma mínima atividade de cautela, a qual teria sido suficiente para reconhecer o comportamento fraudulento [10].

Não se trata, esclareça-se, da imposição geral do princípio da desconfiança nas interações jurídicas, o que contrariaria a agilidade do sistema de intercâmbio de bens e serviços da realidade econômica contemporânea. As margens de relaxamento dos deveres de autoproteção serão definidas pelos riscos inerentes ao setor em que se opera. Consequentemente, o engano jurídico-penalmente relevante seria aquele capaz de vencer os “mecanismos de autoproteção que podem ser exigidos da vítima” [11].

Nesse sentido, argumenta-se que a proteção excessiva do patrimônio alheio não é possível nem positiva, visto que o direito penal não pode liberar completamente os titulares de patrimônio de seus deveres de cuidado, se isso significar riscos às liberdades dos parceiros comerciais [12].

Questionamentos finais

As casas de apostas realizam negócios de risco, os quais, evidentemente, são mensurados a fim de tornar o empreendimento economicamente viável. Confere-se liberdade aos negociantes (apostadores e casas de apostas) para escolherem sobre qual evento apostarão. Por exemplo, no futebol, as apostas podem ter por objeto: time vencedor, número de gols, cartões amarelos ou vermelhos para determinados jogadores etc.

Razoável seria, portanto, exigir algum nível de autorresponsabilidade das casas de apostas. Muito sinteticamente, as empresas devem adotar mecanismos para identificar apostas e apostadores suspeitos. Destarte, pode-se considerar exigível que uma casa de apostas, para defender seus próprios interesses, verifique se o apostador não está, nos termos do artigo 26 da Lei 14.790/2023, impedido de apostar.

Tendo em vista os mecanismos de autoproteção disponíveis às casas de apostas, pode-se questionar, em primeiro lugar, qual modalidade de comportamento fraudulento seria apto a superar tais mecanismos. Em segundo lugar, pode-se indagar também se, em hipótese de uma eventual falha no funcionamento dos mecanismos de autoproteção, o prejuízo patrimonial poderia ser imputado ao autor da fraude ou se este deveria responder apenas por estelionato tentado.

(*) José Roberto Macri Júnior é doutor em Direito Penal pela USP e professor do Centro Universitário Moura Lacerda e veiculou o artigo acima no CONJUR.

[1] MAYER FUX, Laura. Die konkludente Täuschung beim Betrug. Bonn: V&R unipress – Bonn University Press, 2013, pp.228-229.

[2] KUBICIEL, Michael. Wetten und Betrug – Zur konkludenten Täuschung. Anmerkungen zur Entscheidung BGH 5 StR 181/06 v. 15. Dezember 2006, HRRS Nr. 2007 Nr. 1 – „Hoyzer“-Fall. Onlinezeitschrift für Höchstrichterliche Rechtsprechung zum Strafrecht, n.2, 2007, pp.69-70.

[3] VON HENTIG, Hans. Remarks on the Interaction of Perpetrator and Victim. Journal of Criminal Law and Criminology. vol.31, 1940, pp.304 e 307.

[4] Cf. HERNÁNDEZ BASUALTO, Héctor. Normativización del engaño y nivel de protección de la víctima en la estafa: lo que dice y no dice la dogmática. Revista Chilena de Derecho, v.37, 2010.

[5] DEL TUFO, Valeria. Profili critici della vittimo-dommatica. Comportamento della vittma e delitto di truffa. Napoli: Jovene Editore, 1990, pp.37 e ss.

[6] HILLENKAMP, Thomas. Was macht eigentlich die Viktimodogmatik? Eine Zwischenbilanz zur „viktimologischen Maxime“ als Gesetzgebungs-, Auslegungs-, Zurechnungs- und Strafzumessungsprinzip. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft. v.129, 2017, p.607.

[7] Vide: SCHÜNEMANN, Bernd. Das System des strafrechtlichen Unrechts: Rechtsgutsbegriff und Viktimodogmatik als Brücke zwischen dem System des Allgemeinen Teils und dem Besonderen Teil. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Hrsg.). Strafrechtssystem und Betrug. Herbolzheim: Centaurus Verlag & Media UG, 2002, pp.61 e ss.

[8] MACRI JÚNIOR, José Roberto. O engano típico no estelionato. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023, passim.

[9] PASTOR MUÑOZ, Nuria. La determinación del engaño típico en el delito de estafa. Madrid: Marcial Pons, 2004, pp.106-108.

[10] PERÉZ MANZANO, Mercedes. Acerca de la imputación objetiva de la estafa. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal. v. 2, 1996, pp.262-263.

[11] CHOCLÁN MONTALVO, José Antonio. Engaño bastante y deberes de autoprotección: una visión de la estafa orientada al fin de protección de la norma. Revista Aranzadi de derecho y proceso penal. n. 2, 1999, pp.61-62.

[12] SUÁREZ GONZÁLEZ, Carlos. Der Betrug im Lichte einer neuen Tatbestandskonzeption: Betrug und objektive Zurechnung. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Org.). Strafrechtssystem und Betrug. Herbolzheim: Centaurus Verlag & Media UG, 2002.

 

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