O que pode acontecer no julgamento das loterias municipais pelo Supremo Tribunal Federal?

Desde a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2020, advogados e especialistas defendem que os municípios podem executar o serviço público de loterias, sobretudo diante do movimento crescente de prefeitos e vereadores que instituíram esse serviço em seus municípios. No presente artigo, vamos apresentar alguns esclarecimentos e apontar alguns cenários possíveis diante da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1212 (ADPF 1212) ajuizada no STF pelo Partido Solidariedade.
Como se sabe, as ADPFs 492 e 493, bem como a ADI 4.986, sedimentaram o entendimento que, apesar da competência privativa da União Federal para legislar sobre sorteios, tal competência não significa o estabelecimento de um monopólio sobre o serviço público de loterias e, via de consequência, os estados e o Distrito Federal (DF) podem estabelecer tais serviços, incluindo os respectivos modelos de seleção e operação. E vale destacar desde logo que os municípios não fizeram parte das referidas arguições e nem foram objeto delas também. Mas, mesmo assim, diversos municípios têm instituído suas próprias loterias, interpretando o entendimento firmado pelo STF em seu favor.
Os argumentos centrais das Câmaras Municipais e Prefeituras são: a) os municípios no Brasil fazem parte do arranjo federativo em igualdade aos estados e à União Federal (art. 18 da Constituição da República de 1988 – CR/88), cabendo à distribuição de competências tão somente a Constituição, mas sem hierarquia entre os entes; b) o estabelecimento de tal serviço público se enquadra dentro do conceito de “interesse local” (nos termos do art. 30, I e II da CR/88), sobretudo quando se verifica a destinação dos recursos de uma loteria; c) não há em qualquer lugar do texto constitucional uma vedação expressa relacionada ao desenvolvimento do serviço público em tela; d) com a maior oferta do serviço, o consumidor/apostador terá mais liberdade de escolha diante de um universo maior de ofertantes dos serviços; e e) os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Morais citaram os municípios em seus votos no Acórdão das ADPF’s 492 e 493 e a ADI 4.986.
Do outro lado, o Partido Solidariedade, nas palavras do Ministro Nunes Marques afirma:
(…) a instituição e exploração de loterias por municípios brasileiros é uma prática crescente, que viola os preceitos fundamentais da livre concorrência (CF, art. 170, IV), competência privativa da União para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (CF, art. 22, XX) e o princípio federativo (CF, art. 1º). Destaca que a prática cria benefícios de arrecadação para os municípios em detrimento da União e dos Estados, servindo como refúgio para agentes nocivos do mercado de apostas (…) que diversos municípios têm instituído suas próprias loterias, interpretando equivocadamente o entendimento firmado pelo Supremo nas ADPFs 492 e 493 e na ADI 4.986, que tratavam da competência dos Estados para explorar loterias. Sublinha que a competência dos municípios é restrita a assuntos de interesse local (CF, art. 30, I e II) e que a exploração de loterias não se enquadra nesse escopo.
Aponta irregularidades na exploração dessas loterias municipais, como a cessão da atividade para empresas não autorizadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda, a exploração de modalidades de apostas não regulamentadas e a desproporção entre o valor da outorga para exploração da atividade e os valores estipulados pelo Ministério da Fazenda.
Diz que a possibilidade de atuação online das loterias municipais extrapola os limites territoriais do município, invadindo a competência da União (Lei 13.756/2018, art. 35-A). Critica também a forma como os municípios dispõe sobre a arrecadação e distribuição dos valores provenientes das apostas, por inovar e extrapolar as balizas estabelecidas pela Constituição e pela legislação federal, ferindo o princípio federativo e a divisão de competências.
Enfatiza que a criação de loterias municipais desequilibra a exploração dessa atividade entre os entes federativos, prejudicando a União e os Estados, e que a ausência de repasses dos valores arrecadados pelas loterias municipais para os demais entes, como previsto na Lei n. 13.756/2018, configura vantagem competitiva desleal. Por fim, argumenta que a proliferação desregrada de loterias municipais ameaça a livre concorrência, favorece o aumento arbitrário de lucros pelos municípios e o endividamento das famílias. Aponta como necessária a intervenção do Supremo.
Realizada a exposição dos argumentos de ambos os lados, não resta dúvida que o conjunto da demanda somente poderá ser decidido pela Corte Constitucional, pois a matéria envolve, para começo de conversa, o arranjo federativo brasileiro.
E para não deixar passar esta oportunidade, cabem alguns comentários sobre a utilização da ADPF como ferramenta de controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal. Em 1988, tal controle não existia, mas era preciso criar mecanismos de controle concentrado de leis (em sentido amplo) anteriores à República inaugurada em 1988. A resposta veio através da Emenda Constitucional n. 03 em 1993 (EC n.03/93): “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei” (grifo nosso). Inicialmente a “arguição” foi idealizada para aquele controle, mas veio a Lei n. 9.882/99 e apresentou a seguinte redação:
Art. 1º. A arguição prevista no §1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:
I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (grifo nosso);
(…)
E assim as leis municipais passaram a ser objeto de controle concentrado. Em outras palavras, o STF passou a controlar atos municipais com potencial para estar em desacordo com a Constituição. Notem que não foi o constituinte originário ou o derivado que colocou os municípios no STF, mas o legislador ordinário aproveitando a delegação estabelecida na EC n. 03. Como ninguém reclamou da corrupção do instituto da ADPF, o STF vem realizando o controle de leis municipais desde então. E, nessa oportunidade, ressaltamos a explicação do Min. Teori Zavascki sobre o alcance da arguição em foco, a saber:
“A arguição de descumprimento de preceito fundamental foi concebida pela Lei 9.882/99 para servir como um instrumento de integração entre os modelos difuso e concentrado de controle de constitucionalidade, viabilizando que atos estatais antes insuscetíveis de apreciação direta pelo Supremo Tribunal Federal, tais como normas pré-constitucionais ou mesmo decisões judiciais atentatórias a cláusulas fundamentais da ordem constitucional, viessem a figurar como objeto de controle em processo objetivo. A despeito da maior extensão alcançada pela vertente objetiva da jurisdição constitucional com a criação da nova espécie de ação constitucional, a Lei 9.882/99 exigiu que os atos impugnáveis por meio dela encerrassem um tipo de lesão constitucional qualificada, simultaneamente, pela sua (a) relevância (porque em contravenção direta com paradigma constitucional de importância fundamental) e (b) difícil reversibilidade (porque ausente técnica processual subsidiária capaz de fazer cessar a alegada lesão com igual eficácia).” – ADPF 127, rel. Min. Teori Zavascki, decisão monocrática, julgamento em 25-2-2014, DJE de 28-2-2014.
Sendo assim, não temos dúvida sobre a utilização da ADPF para o controle concentrado e nem que o caso concreto envolve matéria constitucional (federação e a distribuição de competência entre os seus entes). Mas nada disso pode ser decidido de maneira simplificada. Não é assim que funciona. Isso porque qualquer decisão do STF se espraia, gerando consequências ao longo do tempo e refletindo em todo sistema jus-político.
Mas para melhorar o entendimento sobre a demanda atual, podemos fazer um breve retrospecto de como a União Federal passou a ter a competência para estabelecer as modalidades lotéricas ou outros jogos que sejam legalizados.
Em fevereiro de 2004, o governo federal edita a MP 168/04 para proibir os bingos e abafar a crise gerada pelo escândalo Waldomiro Diniz. A referida MP foi rejeitada pelo Senado Federal.
Neste período, vários Estados e o Distrito Federal instituíram legislações criando a modalidade Loteria de Bingos (prognóstico passivo presente no art. 14, §1º, I da Lei n. 13.756/18). Em agosto de 2004, por dez votos a um (divergência do Min. Marco Aurélio), o STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2847) ajuizada pelo Ministério Público Federal contra quatro leis do Distrito Federal que versavam sobre Loteria Social. Prevaleceu a tese que as leis distritais violavam a competência privativa da União para dispor sobre sistemas de consórcios e sorteios, incluindo as loterias e os bingos, incluindo tal competência no artigo 22, XX, da Constituição da República de 1988 (CR/88).
Assim, por maioria, o Plenário declarou a inconstitucionalidade das Leis distritais 1.176/96; 2.793/2001; 3.130/2003 e 232/1992. Esse julgamento foi o “leading case”, ou a orientação jurisprudencial que norteou os julgamentos de outras 14 ADIs que já tramitavam na corte: 2930 (ES), 2950 (RJ), 2995 (PE), 2996 (SC), 2948 (MT), 3004 (MG), 3050 (RS), 3060 (GO), 3147 (PI), 3148 (TO), 3189 (AL), 3063 (MA), 3183 (MS) e 3259 (PA).
Em 2007, o STF editou a Súmula Vinculante n. 02 e reiterou o entendimento de 2004: “É inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”. Os ministros do STF da época usaram a competência privativa da União Federal para legislar sobre “consórcios e sorteios” e adicionaram em um exercício de interpretação “bingos e loterias”. Pois bem, não precisa ser um renomado constitucionalista para entender o contexto de consórcios estarem atrelados aos sorteios na Constituição em 1988. Isso porque nos anos 80, período em que o Brasil experimentava uma grande inflação, os consórcios, como modalidade de compra coletiva, permitiam a aquisição de bens e serviços por meio de autofinanciamento e utilizavam o sistema de sorteios entre os seus partícipes. Daí que os consórcios e os sorteios eram intimamente ligados à economia popular. Mas, o STF de 2007, pelos fundamentos que não cabe debater aqui, resolveu incluir os bingos e as loterias no alcance do art. 22, XX da CR/88 e, dessa maneira, o tema loterias virou algo privativo da União Federal.
Agora o STF se vê novamente diante de mais um fruto da referida Súmula Vinculante n. 02, pois não sendo a competência legislativa privativa uma autorização para o exercício monopolista do serviço público em tela, os municípios também estariam autorizados ao mesmo exercício? Mais ainda! E agora nos aproximamos dos objetivos deste artigo: quais são as questões realmente importantes (e nada simples) que estão por trás dessa demanda?
A primeira delas é que caberá ao Supremo decidir se acentua a concentração de poderes na União Federal ou caminha para descentralização, reforçando o papel dos municípios dentro do arranjo federativo. E como desdobramento dessa primeira questão, temos: será assegurado aos municípios mais uma fonte de receita, como instrumento para diminuir a necessidade de repasses de outros entes (estado e/ou União), refletindo positivamente na autonomia político-administrativa deles? Outro desdobramento é com relação aos supostos mercados nacional, estadual e municipal. Como o ingresso dos municípios ofertando os mesmos serviços dos demais entes prejudicaria a arrecadação deles e, consequentemente, os repasses (orçamentos) de cada um? Em termos macroeconômicos, de circulação de recursos no território nacional, com que tipo de desequilíbrio está sendo gerado? Ou, na verdade, a preocupação é com a criação de reservas de mercado (e de orçamento)?
Não é de hoje que a União Federal tenta fazer uma espécie de reserva de mercado, chegando ao ponto de criar constrangimentos no plano legal, a exemplo do art. 35-A da Lei n. 14.790. Tal dispositivo é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 7640 MC/DF (ADI n. 7640). E para ilustrar, vale transcrever um trecho da decisão do Min. Fux em sede de liminar:
Conforme consignei no voto de mérito que proferi na presente ação, o Plenário deste Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADPF´s 492 e 492 e da ADI 4.986, assentou que os Estados têm, em concorrência com a União, competência material para a exploração dos serviços públicos de loteria e que a União, no exercício de sua competência legislativa privativa sobre a matéria, não pode instituir tratamento diferenciado entre os entes federativos, privilegiando determinados Estados em detrimento de outros ou privilegiando a si própria em detrimento dos Estados-membros.
(…) por força dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, o exercício de atividades econômicas por particulares deve ser protegido da coerção arbitrária do Estado, assentei meu entendimento de que a restrição constante do §2º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018 (incluído pela Lei nº 14.790/2023) – que, repita-se, impede que um mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica celebre contrato de concessão de serviços lotéricos em mais de um Estado-membro – não encontra amparo na Constituição, seja porque não se encontra prevista no art. 175 da CF, seja porque acaba por impor aos Estados de menor população a celebração de contratos de concessão com empresas tendencialmente menos qualificadas, violando claramente o pacto federativo.
(…) À luz da ideia de federalismo fiscal, não pode a União impor obstáculos ao pleno exercício de competências arrecadatórias dos Estados, sobretudo à míngua de qualquer justificativa razoável, como no caso concreto (grifos nossos).
Tal decisão, também vale notar, foi referendada pelo Plenário do STF e, portanto, nos dá alguns indícios sobre o posicionamento da Corte em relação ao arranjo de poderes entre os entes federativos. E mesmo que se argumente que municípios não estão nesta ADI, é possível traçar um movimento no sentido da descentralização e preservação da autonomia dos entes federativos subnacionais.
A segunda questão, que pode implicar, inclusive, em um retrocesso do decidido nas referidas ADPFs 492 e 493, é o alcance da legislação federal (o famoso pêndulo entre regra geral e regra material). Em resumo, poderia a União Federal ditar regras e comportamentos aos demais entes da Federação? Atualmente, a maioria dos Juristas que se debruçam sobre o tema entendem que os estados e o DF podem estabelecer o modelo de exploração dos seus respectivos serviços de loterias. Mas se prosperar o argumento de que as loterias dos entes subnacionais devem seguir as diretrizes traçadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), estar-se-ia admitindo uma intervenção federal por simples portaria (mero ato administrativo ou norma infralegal). Novamente: o argumento de que as loterias municipais estão sendo criadas sem respeitar as regras traçadas pela SPA-MF, incluindo o valor da outorga fixa exigida pelo Governo Federal para delegação por ele estabelecida, esconde, na verdade, outra questão. Qual seja: os municípios (os estados e o DF) devem se submeter às regras traçadas pela União Federal para o seu próprio serviço público de loterias?
Nos parece que essa resposta, até o momento, é negativa. E, particularmente sobre a autonomia operacional, gostamos de citar o Ministro Gilmar Mendes na ADPF n. 493:
“(…) Isso porque o art. 22, XX, da Constituição confere competência exclusiva à União somente para legislar sobre a matéria. Sendo a competência prevista apenas formalmente, não se pode dar a esse dispositivo interpretação estendida para gerar também competência material exclusiva do ente federativo, o que não consiste no rol taxativo previsto no art. 21 da Constituição. Em linhas mais simples, aqui que por lei federal como serviço público de loteria, caberá aos demais entes se aprofundarem nos respectivos modelos de exploração (grifo nosso).”
E arrematando as questões acima está a preservação da “livre concorrência”. Eu confesso a nossa dificuldade de entender como a maior oferta de produtos aos consumidores/apostadores pode ser ruim para o estabelecimento de uma competição entre empresas e produtos. O pressuposto é que os consumidores irão procurar os produtos que, de alguma maneira, lhes tragam maior satisfação. A liberdade econômica pressupõe liberdade de escolha, não é verdade? E se o argumento descambar para o combate às fraudes e à preservação dos direitos do consumidor, vale lembrar que toda circulação financeira ocorre dentro do sistema financeiro nacional, incluindo a identificação dos consumidores/apostadores e os seus direitos (art. 24, VIII e art. 170, V da CR/88).
Também cabe lembrar, mais uma vez, que os Ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes citam textualmente a possibilidade de os municípios prestarem o serviço público de loterias em seus votos no julgamento das ADPFs 492 e 493, bem como a ADI 4.986.
No acórdão do julgamento, o Ministro Alexandre de Moraes decidiu em seu voto que os municípios têm as mesmas competências pelo fato de não existir expressa vedação na Constituição Federal. Vejamos o trecho:
“Entendo que, por não existir expressa vedação aos estados e municípios, a União não poderia – nos termos do art. 19, III, da Constituição, que consagra uma das importantes vedações federativas –, ao exercer sua competência legislativa privativa, criar distinções ou preferências entre União e estados, entre União, estados e municípios ou entre estados diversos” (grifo nosso).
O inciso III do artigo 19 da Constituição Federal define que é “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:(…) criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”
O ministro relator Gilmar Mendes destacou no Acórdão citado a importância dos recursos advindos das loterias para financiamento da seguridade social, que no Brasil, é descrita como um conjunto de políticas públicas que visa o bem-estar do cidadão, formado por três principais serviços: saúde, assistência social e previdência social. Vejamos o trecho:
“A implantação ou retomada da exploração desses serviços pelos entes federados subnacionais constituirão, portanto, importante fonte de recursos para a superação de contingências financeiras contemporâneas, além de constituir, em última análise, importante reforço aos recursos da seguridade social (Art. 195, III, da CF/88).”
Lembrando, por mais um turno, que o Estado brasileiro está organizado sob a forma de uma federação, onde o poder político se encontra distribuído pelas partes que integram o Estado Federal, sendo os entes federativos composto pela União, Estados Membros, Municípios e Distrito Federal.
Já a questão do financiamento da seguridade social é definida no inciso III do artigo 195 da Constituição Federal, que será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e de várias contribuições sociais, inclusive sobre a receita de concursos de prognósticos, incidindo, por conseguinte, em qualquer loteria, sorteio, jogo, desde que seja uma atividade lícita.
Ainda remetendo ao julgamento das ADPFs 492 e 493, o Ministro Gilmar Mendes reitera em seu voto a possibilidade de exploração do serviço de loterias pelos municípios ao declarar a não recepção do art. 1º do Decreto-Lei 204/1967 pela Constituição de 1988 quando afirma que “a mim me parece acertado inferir que as legislações estaduais (ou municipais) que instituam loterias em seus territórios tão somente veiculam competência material que lhes foi franqueada pela Constituição”.
As referidas ADPFs configuraram uma mudança de orientação do STF sobre o tema, isso porque em outubro de 2018, o plenário do STF julgou inconstitucional a Lei 1.566/2005, do município de Caxias, no Maranhão, que instituiu uma loteria em âmbito local com o objetivo de arrecadar verbas para financiar a assistência social na cidade. A decisão foi unânime e acompanhou o voto do Ministro Marco Aurélio, relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 337 (ADPF 337), de origem na Procuradoria-Geral da República. Reforçando: no julgamento – anterior ao das ADPF’s 492 e 493, ADI 4.986 e da ADI 3050, relatada pelo próprio Marco Aurélio Mello – o ministro tinha decidido que a competência para legislar sobre sistema de sorteios e consórcios era exclusiva da União.
Mas no Acórdão do julgamento da ADI 3050, publicado em fevereiro de 2021, que a Procuradoria-Geral da República questionou uma lei (10.959/97-RS) e quatro decretos (40.593/01, 40.635/01, 40.765/01 e 37.297/97) do Rio Grande do Sul sobre o serviço de loterias do estado, o então ministro Marco Aurélio Mello citou o voto do ministro Gilmar Mendes, que reajustou à jurisprudência da Corte no julgamento das ADPF’s 492 e 493 e a ADI 4.986 em setembro de 2020. Vamos transcrever o trecho:
“É lícito concluir, portanto, que a competência da União para legislar exclusivamente sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive loterias, não obsta a competência material para a exploração dessas atividades pelos entes estaduais ou municipais.”
Então, após a apresentação de um panorama das decisões sobre o tema pela Suprema Corte e fazendo um apanhado do que está em curso no STF e a APDF que contesta a instituição das loterias municipais, pensamos em quatro cenários: a) o STF não reconhece a loteria municipal como uma atividade de interesse local, apesar dos reflexos orçamentários, e veda o prosseguimento das loterias municipais; b) o STF reconhece a capacidade dos municípios de criarem suas loterias (serviço público) e permite uma “paridade de armas” com a União Federal, cabendo ao consumidor a escolha do produto que mais lhe agradar; c) a referida Corte reconhece a possibilidade das loterias municipais serem exploradas, mas limitam ao território municipal; e d) o cenário descrito no item anterior e agravado com a observância das regras da SPA-MF pelo ente subnacional.
Esses são os cenários que podemos identificar na ADPF que será em breve apreciada pelo ministro Nunes Marques e pelos demais ministros do STF. E, com efeito, esperamos ter contribuído para esclarecer alguns pontos do debate em curso na Corte Constitucional.
(*) Marcello Correa é advogado especialista em relações governamentais e mestre em Ciência Política; 1º. vice-presidente da Comissão Especial de Esportes, Loterias e Entretenimento da OAB-RJ; Integrante da Comissão dos Jogos da OAB-DF e ex-diretor jurídico da Loterj e Magnho José é jornalista, editor do BNLData e presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal – IJL.