Tribuna do Norte: Boom de apostas esportivas levam potiguares ao prejuízo
Amantes de futebol e esportes que assistem TV ou buscam se informar sobre seus clubes do coração não conseguem mais desviar o olho do grande boom que tomou conta do desporto nos últimos anos: as apostas esportivas. Com centenas de casas e bancas online ou físicas, as apostas ganharam o país prometendo altas cotações, lucros rápidos e uma “emoção” a mais na hora de torcer. Apesar de convidativo, o mercado de apostas é arriscado e pode não fazer bem, caso não haja controle emocional. As próprias casas online de apostas possuem alertas de “jogo responsável”, limites de depósito e autoexclusão. Ansiedade excessiva, frustração e vergonha são alguns dos relatos de potiguares que resolveram se aventurar no mercado e saíram no prejuízo, que em alguns casos supera os R$ 50 mil.
A TRIBUNA DO NORTE conversou com vários ex-apostadores, em anonimato, que largaram o mercado. Em alguns casos, a aposta já estava virando vício. Em comum, os mesmos sintomas: ansiedade, perdas consideráveis de recursos e em casos mais raros, danos sérios à vida profissional. Por isso mesmo, a TN teve dificuldade em encontrar personagens que aceitassem gravar entrevista. “Ninguém quer falar quando sai no “red””, disse uma fonte. A expressão é o antônimo de “deu green”, quando uma aposta é ganha.
Um desses casos foi o de um empresário natalense, de 29 anos. Ele jogou por oito anos e lembra que “acordava cedo procurando aposta pra fazer”. “Parei de jogar por três fatores: falta de habilidade para conduzir as apostas, a perda de tempo, pois me dedicava exclusivamente a isso e a terceira foi minha esposa, que nunca gostou disso”, lembra.
“Você só consegue parar se cortar o mal pela raiz. Me sinto bem por ter parado. Busquei ajuda divina: fiz uma promessa para nunca mais apostar na minha vida”, aconselha o ex-apostador.
Um outro caso é de um taxista de Natal, de 47 anos. Ele conheceu as bancas online em 2014, na Copa do Mundo, e resolveu se aventurar. “Entrei para ganhar um dinheirinho extra, assim como qualquer brasileiro. Foi um ciclo vicioso: quanto mais jogava, mais queria apostar. Começava de manhã com campeonatos na Austrália, amanhecia o dia com esse propósito. Quando estava no prejuízo, jogava à noite nos campeonatos brasileiros para tentar recuperar”, explica.
Com uma rotina de trabalho de viagens ao interior do Rio Grande do Norte, o taxista revela que viajava ansioso durante os trajetos para saber dos resultados. “Têm aplicativos que assim que sai gol do time você já é notificado”, comenta. “Comecei a pensar no investimento e na ausência do retorno. O risco não tinha a segurança do retorno, foi quando resolvi parar. Não tinha mais sentido”, diz.
Outro caso é de um professor de história de 29 anos, que mora em Caicó, e pediu para não ser identificado. Em determinados momentos, ganhos extras com freelas e aulas viravam automaticamente recursos para serem apostados, que eram facilmente perdidos. Esse professor conheceu as apostas em 2016 e relembra uma história curiosa, quando queria a ir para um carnaval e buscava levantar recursos para o evento.
“Eu jogava numa banca física da minha cidade e eu tinha um limite semanal de R$ 300. Peguei uma aposta fácil, do campeonato paulista. Um time de primeira divisão contra um que sequer tinha divisão. Usei os R$ 300 e para minha surpresa o jogo foi empate, uma baita zebra, e perdi esse dinheiro. Além de não pegar a grana, precisei negociar a dívida com a banca de forma parcelada e pegar recursos com amigos”, lembra.
“O jogo me causava tristeza, angústia e ansiedade. Eu ficava olhando os jogos que eu tinha apostado ou não e poderia ter feito para ganhar. Isso norteava minhas emoções no dia. Em certo dia, perdi uma aposta de R$ 700 e parecia que tinha perdido alguém na minha família. Não consegui fazer mais nada”, comenta.
Bancas possuem abas para “jogo responsável”
No emaranhado de milhões de mercados nas casas de apostas espalhadas pelo mundo, as principais bancas possuem abas em seus portais alertando para “jogo responsável”.
Na Bet 365, uma das principais bancas de apostas do mundo, o usuário é alertado: “A atividade de apostas deve ser para lazer agradável. Sendo assim, para mantê-lo sob controle, considere: aposta apenas o que pode se dar ao luxo de perder; evite apostar para compensar perdas; tenha noção do tempo e valor que gasto jogando”.
A casa britânica possui ainda um gerenciamento de atividades de apostas, que incluem ações como limite de depósito, período de pausa, alertas de atividade, autoavaliação e autoexclusão.
Na SportingBet, também britânica, a seção Jogo Responsável funciona como uma espécie de FAQ para os usuários. A banca utiliza das seguintes perguntas para o usuário refletir sobre o jogo: “Como posso fechar minha conta ou configurar um período de pausa?”; “Como posso definir e alterar meus limites de depósito?”; “Como sei se tenho um problema com jogo?”, entre outros exemplos.
Vários esportes
As casas de apostas online possuem milhares de mercados e possibilidades em vários esportes. No futebol, por exemplo, uma única partida possui milhares de alternativas, desde o resultado final, primeiro tempo, gols, quantidade de cartões e escanteios, apostas ao vivo, entre outras. As casas permitem ainda que o apostador faça um único cartão com várias cotações.
Um exemplo é que, numa rodada de final de semana de Campeonato Brasileiro, é possível apostar que: o ABC ganha sem sofrer gols; que o América vence seu adversário no primeiro tempo por dois gols de diferença e que o jogo da Seleção Brasileira terá ambas equipes marcando gols. Quanto mais jogos no mesmo cartão, maior será a cotação e maior a margem de lucro.
As casas online são intuitivas e de fácil manejo, algumas inclusive com aplicativos para celular. Uma cotação alta, por exemplo, significa que menos provável de acontecer. O empate da Seleção Brasileira contra a Venezuela nas eliminatórias da Copa 2026, por exemplo, pagava 8.40 por real apostado numa determinada banca. A vitória venezuelana pagaria 25.10 por real apostado. Quando acontecem, as “zebras” acabam “quebrando” apostadores.
“Me identifiquei como uma pessoa que não tem maturidade emocional para grandes prejuízos. Aposta é um investimento de alto risco. Existe sim a chance de ganhar muito dinheiro com isso, mas a possibilidade de perder era pior pra mim. Meu conselho para alguém que quer começar isso, é entender se tem inteligência emocional para fazer isso e se essa atividade será bem administrada, porque os tipos de prejuízos às vezes não valem nem a pena com o dinheiro que se ganha”, comenta o professor de história.
“Jogo traz falsa ilusão de poder”, diz psicóloga
A psicóloga e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Tábita Moreira, aponta que a falta de controle nos jogos de apostas pode ter impactos mentais sérios na vida dos usuários.
“É um pouco semelhante às redes sociais, com likes e passagem de telas, com o usuário ficando cada vez mais conectado na rede. E no jogo, a recompensa é justamente financeira. O mecanismo é que: quando a pessoa ingressa nesses jogos, ela ganha e isso começa a ficar espaçado. Mas como ela já está conectada e com essa expectativa de ganhar, esse usuário fica mais propenso a apostar novamente, por mais que perca”, aponta.
A psicóloga, que atua no Conselho Regional de Psicologia (CRP-RN), aponta que um dos principais complicadores do mercado de apostas esportivas é a “facilidade de acesso”, uma vez que é possível fazer cadastros e pagamentos com pix e cartão de crédito.
“Temos notícias de pessoas que ficaram tão conectadas que perderam vínculos, economias, e isso gera uma depressão grande, ansiedade, tentativas de suicídio e a fragmentação dessas relações familiares. O jogo traz essa falsa ilusão de poder de que você pode controlar algo”, relembra a psicóloga.
Com o mercado de apostas esportivas em vias de regulamentação no Brasil, com taxação de casas e apostadores, a psicóloga reforça a necessidade do Poder Público se atentar para essa demanda que pode surgir para o vício em apostas.
Prejuízos levaram potiguar a estudar para voltar a lucrar
Encantado com o mundo de apostas, o potiguar Ruan Lantierry, de 30 anos, resolveu embarcar nas casas online em 2021 para pagar as contas e proporcionar o básico para a família. Era uma mudança brusca de vida: sair de vendedor de cocadas caseiras para se tornar um investidor. O que parecia ser algo simples foi desafiador e Ruan “quase quebrou”, como ele mesmo fala.
“Decidi me arriscar por completo nas apostas esportivas. Peguei um empréstimo, o que não recomendo, e foquei totalmente no meu sucesso desde então. Conheci o mercado esportivo entre amigos. Sempre apostando valores baixos para tirar grandes prêmios. Creio que meu prejuízo nesse processo começou a ficar alto no momento em que comecei a conhecer mais o mundo das apostas e tentar de tudo pra ser lucrativo”, diz.
Após ter prejuízos, que ele estima entre R$ 20 e R$ 50 mil, Ruan decidiu dar um ultimato nos investimentos e mudou de ramo. Passou a focar no mercado de esportes eletrônicos, como FIFA, estudou e se aprofundou no mercado, virando um especialista e um “broker”, uma espécie de um agente que aposta com recursos de terceiros e divide os lucros, utilizando metodologias e planilhas de controle de gastos.
Entre os estudos feitos no período, Ruan focou em questões como gestão de banca, em que o apostador gerencia seu dinheiro como uma empresa e faz palpites menos arriscados, limites diários e principalmente, controle emocional. Hoje, mesmo tendo lucros diários de R$ 500 a 1.000, Ruan reforça que o mercado é “traiçoeiro” e sugere “cuidado” para usuários. (Tribuna do Norte – RN)