A nova sensação do consumo chinês: transmissão ao vivo com jogos de azar
Vender produtos em transmissões de vídeo ao vivo é um grande negócio na China. Aplicativos como Douyin, o irmão chinês do TikTok, misturam mídia social com comércio eletrônico para manter as pessoas grudadas em seus telefones enquanto compram de tudo, de sabonetes a temperos e malas.
A última tendência do comércio eletrônico acrescenta um jogo de azar à mistura. Conhecida como “blind box livestreaming”, ela se tornou um passatempo divertido e, segundo alguns usuários e especialistas, viciante. Com os consumidores chineses passando por um período de baixas expectativas, as transmissões ao vivo de caixa cega oferecem a emoção de potencialmente ganhar mais prêmios por um baixo custo.
Os espectadores pagam pequenas somas de dinheiro para comprar bugigangas que estão escondidas em pequenas bolsas – a “caixa cega”. O vendedor desembala as blind boxes em uma transmissão ao vivo enquanto o comprador e o público assistem. Com base no que está dentro, os jogadores podem receber outra sacola e outra chance de ganhar. O vendedor fica feliz quando o jogador tira a sorte grande, e os espectadores aplaudem nos comentários.
Muitos produtos são anunciados como colecionáveis, mas, na prática, são simplesmente decorativos. O mais importante é que eles são baratos. Por pouco mais de US$ 1 (R$ 5,88) – e raramente mais de US$ 10 (R$ 58,8)- um espectador da transmissão ao vivo pode comprar algumas bolsas e começar a jogar.
Os brinquedos e outros itens incluídos nas caixas cegas começaram a ganhar popularidade há cerca de cinco anos. Primeiro foram vendidos online e em lojas físicas; a venda deles em transmissões ao vivo gamificadas é uma inovação recente. Agora, praticamente todas as principais plataformas de mídia social da China que permitem comércio eletrônico estão oferecendo transmissões ao vivo de caixas cegas.
As transmissões populares podem atrair dezenas de milhares de espectadores em uma noite. Uma streamer (influencer) disse à mídia de notícias chinesa que obtém um lucro médio diário de 800 renminbi, cerca de US$ 110 (R$ 636), bem acima do salário médio nacional.
O predomínio da transmissão ao vivo de caixa cega reflete o estado da economia da China, que está passando por um período prolongado de confiança em queda do consumidor e gastos reprimidos.
“As pessoas estão procurando formas alternativas de se envolver na economia de consumo sem um grande impacto em suas carteiras”, disse Ivy Yang, analista de comércio eletrônico e fundador da agência de comunicação Wavelet Strategy. “Você quer ter algo que seja uma espécie de emoção barata.”
Os jogadores disseram que o processo pode ser estimulante. A interação com o streamer e outros espectadores pode oferecer um senso de comunidade.
Mas algumas pessoas não conseguem parar de jogar – o que parecia ser uma pechincha pode acabar saindo caro. Xu Wangwang, 28 anos, assistente jurídica na província de Jiangsu, no leste da China, jogou o jogo regularmente por cinco meses até parar em julho. Ela estava gastando uma média de 3 mil renminbi, cerca de US$ 420 (R$ 2,43 mil) por mês, aproximadamente um terço de seu salário.
“Eu me arrependo muito”, lamentou Xu. “Eu poderia ter feito qualquer coisa com esse dinheiro.”
As bugigangas idênticas às compradas nas transmissões ao vivo de blind box geralmente são mais baratas se compradas diretamente no Taobao, um dos maiores sites de comércio eletrônico da China. Mas a experiência não é a mesma. “Comprar diretamente de lojas online não oferece o mesmo valor emocional”, disse Xu. “Posso sentir minha adrenalina disparar quando o apresentador da transmissão abre a bolsa.”
Ivy Sun, que mora na província de Yunnan, no sudoeste da China, fez amizade com outros compradores. Às vezes, eles jogam juntos. “É mais interativo”, disse ela, acrescentando que gastou cerca de US$ 2,8 mil (R$ 16,2 mil) em mais de 400 jogos desde junho.
Quan Hongchan, 17 anos, uma mergulhadora olímpica, apareceu em uma transmissão ao vivo de uma caixa cega um dia antes de ganhar uma medalha de ouro nos Jogos de Paris em agosto. Uma semana depois, ela exibiu sua coleção de brinquedos em uma publicação no Douyin que, desde então, foi excluída.
“Os consumidores precisam de tempo para se adaptar e voltar à razão, mas, no início, entram em frenesi”, disse Qunfang Wu, pesquisador que estuda a interação humano-computador no Berkman Klein Center for Internet and Society da Universidade de Harvard.
A possibilidade de os consumidores ficarem viciados em caixas cegas chamou a atenção do governo chinês, que proíbe os jogos de azar na China continental, exceto nas loterias estatais. No ano passado, as autoridades emitiram diretrizes que regulamentam as vendas de blind boxes, incluindo a proibição de jogadores menores de idade e a exigência de que os vendedores divulguem as chances de ganhar.
Enquanto isso, as transmissões ao vivo gamificadas estão levando a mania a um novo patamar.
Nenhum outro país adotou as transmissões ao vivo de comércio eletrônico como a China e, embora a transmissão ao vivo de caixas cegas possa ser a grande novidade na China agora, talvez não seja por muito tempo.
“Algo mais divertido aparecerá”, disse Wu, de Harvard. “Todo mundo vai segui-lo.”
Veja como funciona o jogo na reportagem do The New York Times (Reproduzida pelo Estadão).