Brasil: Como a religião influencia a regulamentação do jogo?

Destaque I 23.05.24

Por: Magno José

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Seguindo a tão esperada regulamentação das apostas esportivas e iGaming no Brasil, o portal inglês iGaming Business explora em reportagem o impacto da religião nas atitudes em relação a atividade e o progresso da legislação do jogo no país

Na América Latina (LatAm), surpreendentemente, nenhum país tem uma religião oficial do Estado. No entanto, muitos associam denominações cristãs com a região, encontrando a LatAm em geral sinônimo de fé, revela reportagem do iGaming Business.

“O povo latino-americano é, em sua maior parte, cristão”, diz Magnho José, editor da BNLData e presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal. Na maioria dos países, esse número excede 80%, incluindo católicos e evangélicos.

E de acordo com Magnho José e Hugo Baungartner, vice-presidente de mercados globais da Aposta Ganha, a religião está tendo um impacto crescente na política na região.

“Atualmente, a força da religião no continente e o avanço de uma influência religiosa na política institucional são notórios e cada vez mais religiosos, sejam progressistas ou reacionários, se uniram para propagar seus projetos na esfera pública”, explica José.

Baungartner acrescenta: “A influência [religiosa] tem crescido ano a ano com o aumento de diferentes tipos de religião. Hoje em dia eles têm até seus próprios políticos, incluindo a formação de grupos para executar seu poder e influência.

Influência nos resultados legislativos do Brasil

Poucos países da LatAm viram influência religiosa em sua política de jogos de azar como o Brasil, apesar de ser um país religiosamente livre, que até possui um dia nacional dedicado ao princípio – 7 de janeiro.

De acordo com o estudo Global Religion 2023 – realizado em 26 países – o Brasil tem o maior percentual de cidadãos que acreditam em Deus ou em um poder superior, com 89%. Previsivelmente, isso sangrou no regime político do país.

“Nos últimos 82 anos, vários temas têm causado polêmica no Brasil e entre eles está a legalização do jogo”, explica José. “Aqueles que não vivem no Brasil terão dificuldade em entender a falta de objetividade e o bom senso dos políticos brasileiros quando se trata de jogos de azar. As questões religiosas acabam contaminando e distorcendo o debate”.

O Brasil tem sido abalado pelo movimento evangélico nos últimos anos, com cerca de um terço de sua população se identificando como evangélico em 2022. Não é surpresa, então, que os legisladores evangélicos se oponham muito ao Projeto de Lei 3626/2023, a tão esperada lei para regular as apostas esportivas e o igaming, quase interrompendo completamente seu progresso.

“O país mais importante que enfrentou [a oposição religiosa] foi, e será, o Brasil”, diz Felipe Fraga, especialista em América Latina.

A razão é que quando olhamos para os países mais populosos, ninguém tem mais de 20% de uma população evangélica. Além disso, o movimento do neopentecostalismo é muito poderoso no Brasil e as conexões políticas que eles têm são muito fortes.

Efeito não intencional do mercado negro

Tal como acontece com qualquer mercado regulador, as preocupações permanecem sobre a presença de mercados negros e cinzentos no Brasil. Para Baungartner, o aspecto religioso do argumento evangélico pode fazer mais mal do que bem a esse respeito.

“Dizem que [o jogo] é contra a sua fé e o seu Deus, que também é contra”, explica. “Eles usam isso para influenciar outros políticos. Literalmente, para eles é um negócio do diabo. Eles não entendem que o mundo mudou e é melhor tê-lo regulamentado, em vez disso, ter o mercado cinza”.

Fraga – um evangélico – concorda, propondo que a regulamentação irá salvaguardar os cidadãos brasileiros.

“Eles afirmam sobre um ponto de vista social, olhando para riscos de dependência e como isso pode afetar a sociedade, também discutindo sobre lavagem de dinheiro e manipulação de resultados”, explica ele. “Eles dizem que o projeto de lei permitirá ou facilitará o mau comportamento e os atos criminosos, o que é completamente errado, já que a ideia de regulamentação garante a própria tributação e segurança social do país.

“É exatamente o que a indústria está procurando: regras justas para continuar oferecendo formas modernas de entretenimento.”

Bem na vanguarda das crenças fortemente mantidas do evangelicalismo sobre o jogo estão os valores da família, de acordo com Magnho José. Ele observa que na recente Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o jogo estava programado como trazendo “danos morais, sociais e, particularmente, familiares irreparáveis”.

O seguinte foi ouvido no evento: “Um voto a favor do jogo será, na prática, um voto de desprezo pela vida, pela família e seus valores fundamentais”.

Mas a disputa vai além de uma perspectiva moral. Evangélicos e outros políticos religiosos também apontam para preocupações legítimas da indústria, como lavagem de dinheiro e evasão fiscal – que a regulamentação naturalmente abordaria.

Um longo caminho sinuoso para a regulamentação

A influência da religião na lei de jogos de azar no Brasil remonta muito mais longe do que nos últimos anos. O jogo foi proibido no país em 1946 devido à influência religiosa e o bingo foi legalizado entre 1994 e 2005, antes de ser proibido novamente.

É por isso que a passagem do projeto de lei 3626/2023 recebeu uma recepção tão positiva quando passou em dezembro – foi um longo tempo chegando.

O Brasil está atualmente no processo de regulação de seu mercado de iGaming e apostas esportivas. O Ministério da Fazenda do país, em conjunto com o recém-criado regulador – a Política Regulatória da Secretaria de Prêmios e apostas – está continuamente publicando regras para o mercado, que incluem a proibição de pagamentos com cartão de crédito e criptomoeda.

O Brasil poderia voltar atrás na regulamentação do jogo?

Mas para aqueles que se regozijam no mercado, Magnho José avisa-os para não se sentirem confortáveis.

“Há um grande risco de retroceder”, afirma. “Eu não acredito que isso chegará ao ponto de revogar as leis de jogos de azar, mas os religiosos impedirão a expansão e tentarão sufocar as operações de jogo existentes. A oposição ecumênica que critica a possibilidade de legalizar o jogo deveria refletir que os benefícios positivos do jogo legal superam em muito as desvantagens propostas por qualquer pessoa ou grupo contra o jogo.”

Baungartner insiste que, no final do dia, o jogo é um negócio e sua aceitação em outros países neutraliza sua posição dizendo: “A mentalidade mudou ao longo dos anos”.

Portanto, a revogação pode não estar nos cartões – pelo menos ainda. Enquanto a indústria jogar bola, diz Fraga, deve ser um caminho suave a seguir para o mercado regulador do Brasil.

“Quanto a indústria crescer na América Latina e mostrar que é uma parte importante da sociedade – gerando empregos, movendo a economia, entretenimento, controlando o vício, etc – não haverá razão para revogar as leis”, diz ele.

“Mesmo que possamos considerar os riscos, não haverá nada acontecendo em breve.”

 

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