Epidemia do jogo toma conta do País.

Jogo Responsável I 11.08.03

Por: sync

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Baralho, loterias, cavalos, bingo, caça-níqueis, bicho. Não importava o jogo e sim apostar. Por causa da dependência, perdeu carros, casa, amigos, marido. Acabou na mão de agiotas. Foram cinco anos de mentiras e terror, vagando de bingo em bingo para "esmolar" cartelas, comida, café.
Período que ela quer esquecer.
Vítima de uma "epidemia" que não aparece nas estatísticas do Ministério da Saúde, L., paulistana de 46 anos, sofre de uma doença que nos próximos anos pode atingir mais de 5,3 milhões de brasileiros, segundo especialistas. Uma enfermidade algumas vezes letal: a dependência do jogo leva 22% das mulheres e 6% dos homens a tentarem o suicídio, segundo dissertação de mestrado da médica Sílvia Sabóia Martins, defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Hoje, o jogo movimenta cerca de R$ 500 milhões por ano no Brasil. Bingos e máquinas caça-níqueis são os que mais crescem em número. Segundo a CPI do Bingo, já existem mais de 250 casas, com centenas de máquinas de videopôquer. Os caça-níqueis – em bares, lanchonetes, padarias – superam os 250 mil. "Com essa epidemia, o País terá, em pouco tempo, de 2% a 3% de sua população envolvida no jogo", acredita o psiquiatra Hermano Tavares, fundador do Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo), do Instituto de Psiquiatria da USP, no Hospital das Clínicas. Segundo ele, as mulheres desenvolvem a compulsão, em média, quatro vezes mais rápido que os homens. Acompanhando dependentes desde 1997, Tavares concluiu: ganhar dinheiro em jogo é um sonho distante. "Chega uma fase em que a pessoa vê que está perdendo. Começa a tentar reverter o quadro. Aí aumenta a aposta para recuperar e passa a perder mais." Uma roda-viva que nunca tem um final feliz. As sucessivas perdas obrigam os dependentes a pedir empréstimos para amigos e parentes. "O dinheiro obtido volta para o jogo e a pessoa quebra de novo. Acaba indo morar na rua, perde família, amigos. Começa a recorrer a agiotas", relata. "Sem ter como pagar, muitos tentam o suicídio."
Estelionato – Os caça-níqueis estão em todos os pontos do País. A cada mês surge um bingo novo e centenas de máquinas passam a funcionar. "O Brasil foi inundado pelas máquinas eletrônicas programáveis", afirma o promotor de Justiça Rodrigo Canelas Dias. Segundo ele, num primeiro momento elas parecem uma brincadeira inofensiva. "No entanto, escondem estreita ligação com a máfia italiana e espanhola", garante. Em seu trabalho sobre a tipificação legal da exploração dos caça-níqueis, Canelas Dias revela que documentos encaminhados ao Ministério Público de São Paulo pela Direção Investigativa Anti-Máfia, da polícia italiana, mostram que o dinheiro, inclusive do narcotráfico, estaria sendo "lavado e reciclado" no Brasil por empresas relacionadas com a importação e a exploração das máquinas de videobingos e de caça-níqueis. O promotor revela ainda que estudos dos peritos do Instituto de Criminalística de Bragança Paulista verificaram que todas as máquinas de jogo, das mais simples às mais sofisticadas, são dotadas de microchaves (switches), por meio das quais é possível alterar seu comportamento de acordo com a vontade de quem as explora. "Trata-se de jogo viciado, de estelionato coletivo, a ser capitulado como crime contra a economia popular." A Lei 9.615, de 1998, a chamada Lei Pelé, determinou que não deveria ocorrer a exploração das máquinas eletrônicas programáveis nas salas de bingo. Mas, em São Paulo, muitos estabelecimentos funcionam sem alvará, amparados por liminares.
Sem fiscalização – O Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic) paulista tem 30 inquéritos sobre as atividades dos bingos, mas as apurações estão paralisadas. Com isso as máquinas caça-níqueis funcionam livremente, sem passar por fiscalização da polícia, das prefeituras ou da Justiça. Em maio, com base na denúncia da mulher e da filha de dois entregadores de produtos do Mercado Municipal, a Delegacia de Crimes Eletrônicos, do Deic, apreendeu máquinas em quatro bares da Rua Cantareira. No Estado de São Paulo, bicheiros, comerciantes, ex-policiais e pequenos empresários exploram os caça-níqueis livremente. Já os bingos são controlados por bicheiros, estrangeiros e empresários.
Jogadoras demoram mais para buscar ajuda.
Elas preferem jogos eletrônicos; com vergonha da dependência, entram em depressão.
O número de mulheres dependentes de jogos de azar vem aumentando de forma acelerada nos últimos anos. A explicação? Elas se tornam compulsivas bem mais rápido que os homens, quadro também demonstrado entre as alcoólatras e as que consomem drogas. Para agravar esse quadro, sofrem de depressão por causa do problema e dificilmente buscam auxílio especializado. "É o grupo que mais resiste a procurar ajuda nos JAs (Jogadores Anônimos) ou no Amjo (Ambulatório do Jogo Patológico)", afirma a médica Sílvia Sabóia Martins, que montou um perfil do jogador. A pesquisadora realizou 156 entrevistas, divididas igualmente entre homens e mulheres. O resultado virou dissertação de mestrado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), defendida na semana passada. Antes de começar o trabalho, a médica já tinha acumulado experiência com esse tipo de dependentes no Amjo, do Instituto de Psiquiatria da USP. As mulheres, indica a pesquisa, apresentam comportamento de risco maior que os homens: 22% delas informaram que, por causa do jogo, já haviam tentado o suicídio. Entre os homens, o índice foi de apenas 6%. Outra descoberta: elas têm preferência por jogos eletrônicos, nos quais se ganha – ou perde – rapidamente. O estudo também identificou a idade dos jogadores. O compulsivo pelas apostas está na faixa dos 41 anos. Já a mulher jogadora tem idade um pouco superior, 44 anos, em média. Em outros aspectos, o perfil é bem parecido. A maioria de homens e mulheres é branca, casada, tem dois filhos, está desempregada e estudou até a 4.ª série. A religião da maior parte dos dependentes é a católica. Entre os entrevistados, 59% dos homens e 82% das mulheres disseram preferir os jogos modernos, como bingo, videopôquer e caça-níqueis. Outro dado alarmante. São minoria os que passaram por tratamento para se livrar da compulsão. Apenas 23% dos homens e 12% das mulheres buscaram esse auxílio. Os locais mais procurados por quem quer ajuda são as unidades dos Jogadores Anônimos. Alguns entrevistados também são dependentes de outras substâncias, como bebidas e drogas. Entre os homens, 58% fumam, 18% bebem e 4% usam outras drogas; das mulheres, 72% fumam, 4% bebem e 6% usam drogas. (Renato Lombardi)

Jogadores Anônimos: (0xx21)2459-9374, (0xx11)6168-8202 e (0xx11)5562-5055

Sem clientes, bicheiros investem em caça-níqueis ou viram sócios de bingo.
Movimento das bancas caiu 60% em SP após boom de máquinas e casas de jogo.
Os bingos e as máquinas caça-níqueis provocaram a queda do movimento do jogo do bicho, em São Paulo, em mais de 60%. Alguns bicheiros abandonaram seus chalés e passaram a explorar os caça-níqueis. Uma pequena parcela, formada pelos mais ricos, se associou aos donos de bingos. São grupos espanhóis, italianos, franceses e portugueses, que trazem, instalam e exploram a maioria das máquinas no Brasil. Na capital, na Grande São Paulo e em cidades do interior, os bicheiros reclamam da diminuição do número de apostas. As pessoas preferem freqüentar os bingos – que também têm máquinas caça-níqueis -, os bares e as padarias. "Os apostadores compram fichas de R$ 0,10 e R$ 0,25. Jogam muito. Chegam a perder até R$ 200 por dia", explica Luís Enoque, que viveu mais de 20 anos do jogo do bicho e hoje trabalha como assistente em um bingo de um jogador de futebol. Com o dinheiro ganho durante os anos "de ouro", os bicheiros diversificaram seus negócios, aplicando em fazendas, revendedoras de veículos, hotéis, restaurantes. Alguns investiram em escolas. O maior centro de arrecadação do jogo do bicho funciona ainda na Central de Abastecimento (Ceagesp) e é explorado pelo grupo de Ivo Noal, um dos bicheiros mais antigos de São Paulo. No começo dos anos 90, foi o primeiro ponto de jogo a ser informatizado. Depois, os bicheiros abandonaram os livros de registro e passaram tudo para o computador.
Nos últimos anos, a polícia de São Paulo deixou de perseguir os bicheiros.
Com o aumento da criminalidade, delegados, investigadores e secretários da Segurança afirmam que preferem usar os policiais no combate ao crime que perseguir os contraventores. Mas centenas de policiais não deixam de "visitar" os pontos de aposta, principalmente às sextas-feiras.
Sem provas – Os bicheiros em São Paulo foram investigados pela polícia e por duas CPIs da Assembléia Legislativa, acusados de envolvimento com o tráfico de drogas. Nada ficou provado. Foram também investigados pela ligação que teriam com policiais civis e militares, que acobertavam o jogo. A Corregedoria da Polícia Civil realizou a mais longa investigação sobre o jogo do bicho em São Paulo e preparou o maior inquérito de sua história, com 548 volumes e 109 mil páginas. O Ministério Público Estadual (MPE) acompanhou o trabalho e denunciou 65 bicheiros e 43 policiais – entre delegados, investigadores, escrivães, agentes policiais – e alguns militares. Todos foram acusados de crimes de formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, co-autoria e crime continuado. O MPE também solicitou à Justiça o seqüestro dos bens dos acusados. Foram analisados documentos do Banco Central, da Receita Federal, de Cartórios de Registro de Imóveis e de Secretárias Municipal e Estadual da Fazenda. Os promotores comprovaram que os policiais não teriam como obter os bens que possuíam com seus salários.
O juiz não aceitou a denúncia. Foram quase dois anos de trabalho da polícia.
E o caso acabou sendo encerrado sem punição. Os velhos bicheiros continuam com suas bancas. Um velho cambista, que por anos arrecadou apostas para muitos bicheiros, definiu o que é hoje o jogo do bicho em São Paulo. "Os velhos ainda jogam. Mas são poucos. Seus filhos e netos estão nos bingos, nos caça-níqueis e nos carteados. O bicho está pela hora da morte." (R.L.)
A história sofrida dos Jogadores Anônimos.
Os jogos e as perdas ocupavam um espaço imenso; então, eles resolveram tratar-se.
As reuniões dos Jogadores Anônimos (JA) ocorrem todas as semanas. O objetivo é parar de jogar, voltar a viver em sociedade, para a família. Na noite de sexta-feira, um grupo se reuniu nas dependências de uma antiga fábrica do bairro da Ponte Pequena. As histórias são semelhantes. L., a paulistana de 46 anos, tinha uma vida social intensa. Freqüentava festas, reuniões, os melhores clubes de São Paulo. Morava no bairro do Pacaembu com conforto e oito empregados. O marido era um empresário de sucesso, dono de indústrias. Começou jogando baralho no clube, nas tardes de sábado e domingo, para passar o tempo. Saiu das mesas do clube e não parou mais. "Larguei casa, marido, família, tudo pelo jogo." Quando parecia que não encontraria uma saída para o seu desespero, surgiu em sua vida um ex-empresário que, como ela, também era viciado em jogo. O encontro foi na saída de um bingo em Cerqueira César. Os dois ficaram até as portas serem fechadas. Não tinham dinheiro nem para onde ir. A chave do quarto que o ex-empresário ocupava de favor nos fundos de uma casa na periferia da zona sul caiu sobre alguns papéis na calçada do bingo. Eram folhetos dos Jogadores Anônimos (JA). "Saímos lendo o que nos ofereciam", informou L. Dois dias depois estavam na reunião dos JA, nos fundos de uma igreja. Das conversas entre os viciados em jogo passaram para o acompanhamento médico no Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), no Hospital das Clínicas. Faz quase um ano que não entram num bingo, não pegam numa carta, não apostam no bicho, não fazem a via-sacra pelos bares para jogar nas máquinas caça-níqueis. "Estou me livrando", disse L. "Acredito que estou voltando a viver." Paulo tem 55 anos. Funcionário público federal aposentado, perdia o salário em apenas uma noite de bingo. Para ele a vida conjugal instável o levou para o jogo. "Quando ouvi do meu filho mais velho que não tinha mais condições de viver com a família, voltei para a casa da minha mãe." Ele afirmou que a ilusão de que sua presença era necessária por ser pai se desfez "como na história do rei que se descobriu nu. Minha família não entendia que eu tenho uma doença."
Paulo chegou a jogar no bingo com 1.800 cartões.
As dívidas se acumulavam:
Açougue, banca de frutas, amigos, parentes. Ao chegar à casa da mãe, entregou os cartões, os talões de cheques e saiu em busca de um empego para pagá-las. Em 4 de agosto de 1997, descobriu os Jogadores Anônimos (JA) e nunca mais jogou. "Não precisei pagar os estudos do meu filho mais velho, que cursou a Universidade de São Paulo, mas paguei a faculdade do outro filho e custeio a estada da filha que estuda na Unicamp, em Campinas." O grupo dos JP tinha seis meses quando Paulo chegou e ele se tornou um dos mais entusiastas, coordenando e formando novos grupos. A. é secretária júnior de uma transportadora. Tem 39 anos, duas filhas e quase perdeu o emprego por causa do bingo. "Eu saía para almoçar, entrava num bingo e não voltava para o trabalho. Foram quatro anos de jogo." O começo foi por curiosidade. E ganhou. Depois passou a freqüentar os bingos a cada 15 dias. E perdia. Seis meses depois ia todos os dias. "Perdi mais de R$ 100 mil, não pagava as despesas de casa, o dinheiro ia todo para o bingo." As coisas mudaram quando ela foi chamada pela assistente social da empresa. "Todos sabiam que eu estava me acabando no jogo e ela ofereceu ajuda, tratamento. Eu aceitei." Ficou 36 dias numa clínica de dependentes químicos. Quando saiu, soube dos Jogadores Anônimos e passou a freqüentar as sessões. "No JA descobri que tenho uma doença e preciso estar sempre pronta para combatê-la. Minhas filhas me olham agora como mãe. Meus amigos me tratam de outra maneira. Espero jamais voltar a jogar." Ele jogava, bebia e fumava. O começo foi no bicho. Tinha 17 anos. "Eu jogava todos os dias de R$ 50,00 a R$ 100,00." Do bicho passou para o bingo e por último para as máquinas caça-níqueis. Funcionário público municipal, O., de 47 anos, também quase perdeu o emprego, a mulher e a filha. "Eu estava errado em tudo. Minha mãe me levou para os Alcóolicos Anônimos (AA) e passei pela primeira etapa, que foi parar de beber. No AA, minha mãe soube dos Jogadores Anônimos e aqui venci mais uma etapa. Decidi que, se tinha parado de beber e de jogar, por que continuaria fumando? Parei de fumar." O. Passava os dias dentro dos bingos ou percorrendo os bares em busca de máquinas caça-níqueis. "Perdia na maioria das vezes." Ele freqüenta o JA há quatro anos. "Se deixar de comparecer às sessões, voltarei a jogar. Aqui eu descobri que sou um doente." Os dependentes também recorrem ao Ambulatório do Jogo Patológico (Amjo), criado em 1997 e adaptado do modelo de combate ao álcool e às drogas do Hospital das Clínicas. As pessoas participam de reuniões de psicoterapia em grupo ou sessões individuais. Em média são 40 sessões "Elas chegam com ansiedade, depressão, procurando ajuda. A história se repete. Jogaram tudo e perderam tudo", afirma o médico Hermano Tavares, que criou o ambulatório. A espera para tentar se tratar no Amjo é de seis meses a um ano. E o trabalho é feito por voluntários. "Os grupos começam sempre com dez pessoas, mas no meio do caminho alguns desistem. A queda acaba sendo benéfica, pois melhora o atendimento." Os psiquiatras do Amjo procuram motivar para a abstinência, evitar recaídas. Discutem-se as alternativas para deixar o jogo. O tratamento é gratuito.
Estado de SP – Renato Lombardi

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