Ex-secretário de Haddad que regulou apostas assumiu defesa de bets sem avisar Presidência, diz comissão
Dois funcionários do alto escalão do Ministério da Fazenda que iniciaram o processo de regulamentação dos sites de aposta saíram do governo para liderar a banca de apostas esportivas no escritório CSMV Advogados. A legislação incluiu no regramento do país produtos como caça-níqueis virtuais, transmissão de roleta, aposta esportiva e outras modalidades similares, registra reportagem da Folha de S.Paulo.
Ex-assessor especial da Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda responsável pela elaboração da lei que regulou os sites de apostas (Lei 14.790/2023), José Francisco Manssur foi anunciado, em 5 de junho, como sócio no CSMV, escritório conhecido por representar a Libra, liga que reúne as camisas de maior torcida no Brasil, como Flamengo, Corinthians e Palmeiras.
O advogado entrou como superintendente de apostas esportivas —um setor da economia regulado por lei aprovada no final do ano passado, da qual Manssur foi o principal formulador de dentro do governo—, conforme noticiou primeiro o Estado de S. Paulo e confirmou a Folha.
De acordo com a Comissão de Ética Pública (CEP) da Presidência da República, que liberou o ex-funcionário da Fazenda a exercer atividade advocatícia antes do fim da quarentena de seis meses, Manssur não informou à entidade sobre a proposta profissional que recebeu nem sobre possível conflito de interesse.
Em seu pedido, Manssur informou apenas que desejava voltar a advogar, em consonância com sua formação intelectual.
“Não há impedimento para voltar à advocacia, a não ser que haja um conflito de interesse específico, o que não havia na ausência de uma proposta formal. Por isso, autorizamos, desde que respeitadas as condições citadas na decisão”, diz o presidente da CEP, Manoel Caetano Ferreira.
Uma das condicionantes dessa liberação era que Manssur informasse se recebeu propostas para trabalhar no setor privado ou identificasse possíveis conflitos de interesse.
Manssur não informou à CEP que começou a defender clientes do setor de apostas ao assumir sociedade no CSMV Advogados em 5 de junho, diz Ferreira à reportagem.
Procurado pela Folha, Manssur afirma que “foi orientado em ligação telefônica de 13 de junho de 2024 por uma assessora da CEP a não realizar uma nova comunicação, uma vez que o formulário de 9 de abril por ele submetido já mencionava que iria exercer a advocacia, e a proposta de CSMV era para atuar em um escritório de advocacia”. Em vista disso, ele afirma ter seguido a orientação.
Como Manssur foi a figura central na formulação da Lei 14.790 de 2023, que regulou os sites de apostas no país, advogados e especialistas em administração pública ouvidos pela reportagem chamam a prática de “porta giratória” —termo usado para descrever situações em que servidores públicos assumem postos como lobistas ou consultores na área de sua atividade anterior no serviço público.
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Manssur ainda levou consigo a ex-secretária-adjunta de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda Simone Vicentini. Ela, destaca publicação no site do CSMV Advogados, foi responsável pelas portarias que “habilitaram entidades certificadoras dos sistemas de apostas online, estúdios de jogos ao vivo e online, a disciplina das transações de pagamento e a instituição da política Regulatória do setor”.
Vicentini deixou a secretaria-adjunta da SPA em 2 de maio, sinalizando também a pretensão de ser advogada. Para isso, recebeu aval do conselheiro Edvaldo Nilo de Almeida. Em 19 de julho, o CSMV Advogados anunciou a sua contratação.
De acordo com a CEP, a ex-servidora notificou a comissão da proposta em 13 de julho e ainda não houve veredito sobre o possível conflito de interesse.
Em nota enviada à Folha, ambos os advogados dizem que a CEP “concluiu pela inexistência de conflito de interesse para o exercício da advocacia, sem qualquer ressalva a respeito de áreas de atuação, e pela dispensa da necessidade de quarentena”.
A professora de Administração Pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Alketa Peci afirma que o caso de Manssur não é um caso de “porta giratória” tradicional, uma vez que o ex-assessor passou a maior parte de sua carreira no setor privado.
“Essa expertise adquirida no mercado também pode ter indicadores de captura, já que Manssur pode ter levado esses interesses que ele defende para sua atuação no governo, às vezes a captura não é simplesmente de interesse econômico, às vezes a captura se dá por compartilhamento da mesma forma de olhar o papel do Estado na vida econômica social”, afirma Peci.
Para ela, a quebra da quarentena nesse caso foi uma falha. “Esse mecanismo deveria garantir que a mudança de atuação do setor público no cargo comissionado para o setor privado viesse após um tempo de giro necessário.”
Procurado, o ministro Fernando Haddad disse por meio de sua assessoria que não tinha ciência das atividades profissionais que José Francisco Manssur e Simone Aparecida Vicentini assumiriam após deixarem o Ministério da Fazenda.
Em entrevista logo após a saída de Manssur em 19 de fevereiro, o ministro Fernando Haddad elogiou o trabalho de Manssur na “formatação do projeto das bets”. “Ele é um profissional de altíssima qualidade. Mas, enfim, a pedido, vai enfrentar outros desafios.”
No período em que foi assessor especial da Secretaria Executiva da Fazenda, Manssur recebeu advogados do CSMV Advogados em cinco ocasiões —quatro com participação de Vicentini.
Renato Pucci, que assumiu em julho o cargo de coordenador-geral de Fiscalização de Apostas e será responsável pela supervisão do setor, esteve em quatro das reuniões mantidas entre Manssur, Vicentini e representantes do CSMV Advogados. Numa reunião de 4 de dezembro, a 18 dias da aprovação da Lei 14.790/2023, o objetivo era discutir a regulamentação das bets que iria a votação.
Em outro desses encontros, o escritório representava a casa de apostas sediada na Suíça Sportradar, que ainda não se cadastrou para atuar no Brasil, embora tenha sinalizado interesse.
Entre fevereiro de 2023 e o mesmo mês deste ano, Manssur manteve reuniões com 22 casas de apostas e entidades patronais do setor, mostra levantamento da consultoria de análise política e-Relgov, com base na agenda dos ministérios.
Entre as empresas que visitaram o escritório de Manssur, estiveram casas de apostas que ainda não se cadastraram para atuar no mercado regulado brasileiro, como Bet365, BGC e Galera.bet.
“É curioso que essas empresas, que não estão no país para responder juridicamente por suas atividades, mantenham representantes para manter reuniões com agentes do setor público, para avaliar se vale a pena entrar no país”, diz Ana Junqueira, da E-Relgov.
Após a saída de Manssur, Vicentini manteve reuniões com mais seis entidades representativas das empresas do setor.
Em nota, os advogados Manssur e Vicentini dizem que, “durante o período em que estiveram no governo, realizaram centenas de reuniões para debater o tema da regulamentação das apostas online no Brasil, nas quais receberam todos os interessados em discutir o assunto.”
Eles dizem que estão em conformidade com a vedação da CEP ao uso de informações privilegiadas.
“Desde o início de suas atuações como advogados da equipe de CSMV Advogados, José Francisco Manssur e Simone Aparecida Vicentini não fazem, e jamais farão, uso de informações privilegiadas, ou atuarão em processos dos quais tiverem participado, cumprindo estritamente todas as determinações exigidas pela CEP nas decisões que os dispensaram da quarentena.”
Nesta segunda-feira (5), o Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) expediu representação para que seja iniciada investigação da ida dos dois ex-funcionários da Fazenda para o setor privado. O documento é assinado pelo subprocurador-geral junto ao TCU, Lucas Furtado.