Futebol e celular impulsionam bets entre crianças e adolescentes: como educar contra o vício?

Apostas I 14.09.24

Por: Magno José

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Equipe é banida do futebol após fazer 41 gols contra no mesmo jogo
Preocupação chega a escolas e famílias; risco está na forma como as apostas online são apresentadas, como algo divertido e até saudável, dizem especialistas

Um adolescente de 16 anos perdeu R$ 4 mil apostando em jogos no seu celular, usando o cartão dos pais. A família demorou a perceber o vício nas chamadas bets porque, como quase sempre acontece, os palpites começam com valores menores, registra reportagem do Estadão.

Outro jovem, de 15 anos, de uma escola de elite de São Paulo e apaixonado por futebol, achou divertido apostar a mesada junto com amigos e ver quem acertava mais o número de passes em um jogo. Numa escola pública, um aluno pediu Pix de R$ 3 para a professora para jogar nas bets.

Essas são histórias reais relatadas à reportagem. Os nomes são preservados para proteger as identidades dos adolescentes.

A proximidade com o futebol, os games e o celular fizeram com as bets entrassem no universo infantil e adolescente com uma força que preocupa escolas, famílias e especialistas.

O maior risco é a forma como as apostas esportivas são apresentadas, o que atrai fortemente crianças e adolescentes. A publicidade ostensiva online e offline, com influenciadores e até medalhistas olímpicos, durante o jogo de futebol, na camisa dos times, nas redes sociais, normaliza as bets e faz com que pareçam saudáveis e divertidas.

A falta de regulamentação no País, que só agora começa a ser enfrentada, também permite que o público infanto-juvenil fique desprotegido e tenha acesso a uma atividade proibida para menores. O Instituto Jogo Legal, entidade que representa o setor, diz que o problema está nos sites irregulares.

“Uma coisa que era do mundo adulto, concentrada em cassinos, mesa de boteco. De repente entrou no bolso, na palma da mão, e ainda associada à paixão pelo futebol, promovido pela TV no jogo. É poderoso e avassalador”, diz o orientador educacional da Escola da Vila Fermín Damirdjian, na zona oeste de São Paulo.

O colégio mandou este ano comunicado aos pais sobre o problema depois que soube do envolvimento de alunos e trabalha o assunto em projetos sobre saúde mental.

As pesquisas mostram ainda que crianças e adolescentes têm menor capacidade de controle de impulso e são mais suscetíveis a atividades que prometem recompensas rápidas e parecem emocionantes. Por isso, dizem especialistas, só educação financeira não resolve a questão.

Na Camino School, na Barra Funda, zona oeste, a direção começou a discutir o problema no meio do ano porque foi avisada pelas famílias sobre casos e percebeu que os professores ainda sabiam pouco do tema. Agora prepara uma formação para os docentes que inclua bets, como aulas para falar do vício e suas consequências.

“Cai muita coisa sobre a agenda das escolas, falta tempo. Nós, como sociedade, ainda estamos despreparados para essa juventude conectada e eles, desprotegidos”, diz Letícia Lyle, diretora da Camino. Na rede estadual paulista, discussões sobre bets foram incorporadas recentemente ao material didático online, na disciplina de educação financeira no ensino médio.

A preocupação com as apostas online esbarra ainda na falta de pesquisas sobre impactos nas populações. Mas estudos já mostraram que jovens têm mais possibilidades de se viciar em jogos de azar do que adultos pela imaturidade biológica e emocional.

O fato de os jogos estarem disponíveis em celulares, além de facilitar o acesso, incorpora uma camada de preocupação. Estudos recentes também já têm ligado o uso frequente de aparelhos e redes sociais ao vício e a problemas de saúde mental em crianças e adolescentes. Tem aumentado também o número de escolas que proíbem o uso.

‘Sou bom nisso’, disse jovem de 15 anos

“O tempo todo, nas redes sociais, estão expostos a histórias de pessoas que teoricamente tiveram sucesso, sendo muito jovens, dizendo que ganharam dinheiro rápido. Começam a acreditar que é comum”, diz o pesquisador do Instituto Ame Sua Mente Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e da adolescência. “A bet aparece na vida dele, ajuda a chegar a um lugar sem muito esforço.”

A mãe de um jovem de 15 anos, de uma escola de elite da zona oeste paulistana, diz que o filho contou orgulhoso aos pais que tinha ganho dinheiro em apostas esportivas online. “Ele veio como se fosse legal, dizendo ‘sou bom nisso’!”, lembra. O menino usava parte da mesada em apostas – R$ 20, R$ 30, R$ 50, sucessivamente – que previam quantidade de passes em jogos de futebol.

“Comecei a jogar junto com meus amigos para ver quem ganhava mais, você não pensa direito, tem tanta propaganda. A gente pode apostar em um jogo na Turquia, na Inglaterra ou no que passa na sua frente, parece um game”, diz o garoto corintiano fanático. Os pais tiraram o acesso do menino ao Pix, conversaram sobre o vício e informaram à escola. Depois de jogar várias vezes durante um mês, ele não mais voltou a apostar.

Uma das referências mundiais em regulamentação do tema é um relatório do Parlamento da Austrália, de 2023. “O jogo online tem sido deliberadamente e estrategicamente comercializado juntamente com os esportes, o que o normalizou como atividade divertida, inofensiva e sociável”, diz o texto, acrescentando que isso “manipula” o público mais “impressionável e vulnerável”, as crianças e adolescentes.

O governo australiano ainda discute o que será tornado lei no país após recomendações do relatório, especialmente na publicidade. As apostas esportivas online cresceram em muitos países a partir da Copa de 2018.

Novas exigências

No Brasil, o Ministério da Fazenda está finalizando o cadastramento das bets com novas exigências, o que levará a cobrança de impostos e transferências bancárias apenas para as empresas regularizadas. Estima-se que 15% do mercado seja de sites sem registro, que permitem que apostadores joguem apenas com um número de celular.

Esse mercado movimenta entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões no País, quase 1% do Produto Interno Bruto (PIB). Há preocupação sobre endividamentos e com os recursos que deixam de ser gastos com bens e serviços.

“Criança e adolescente só vão apostar a partir de 1º de janeiro (quando entra em vigor a nova regulamentação) com a conivência do pai ou responsável”, diz o presidente do Instituto Jogo Legal, que representa o setor, Magnho José. Para ele, o problema são bets ilegais que não exigem CPF e data de nascimento do jogador. No entanto, a reportagem ouviu relatos de adolescentes que jogaram em plataformas de apostas autorizadas, burlando sistemas de registro.

Em junho, o Instituto Alana fez denúncia ao Ministério Público de São Paulo porque encontrou dez perfis de influenciadores mirins, entre 6 e 17 anos, que fazem propaganda de sites de apostas. Segundo a entidade, os perfis ainda estão ativos.

Procurada, a Meta, plataforma responsável por abrigar os perfis em redes como o Instagram, afirma que suas políticas “não permitem conteúdos potencialmente voltados a menores de 18 anos que tentem promover jogos online envolvendo valores monetários” e diz remover posts desse tipo.

Veja dicas para lidar com o tema:

⇒ Compartilhe relatos ou histórias de quem teve problemas com apostas (perdeu muito dinheiro, vício ou efeitos na saúde mental)
⇒ Não trate apostas como algo divertido
⇒ Não discuta pretensas habilidades para se conseguir ganhar mais facilmente
⇒ Atenção à cultura de apostas de adultos na família, isso leva a uma naturalização para crianças e adolescentes
⇒ Fale de riscos, mas com equilíbrio e bom senso. Ser alarmista com tudo pode fazer a criança ou adolescente ter medo de tudo ou, por outro lado, querer testar os pais
⇒ Discuta educação financeira e fale do valor do dinheiro, de como ele é ganho e da importância de se poupar o futuro
⇒ Acompanhe de perto as crianças e adolescentes em celulares e redes sociais

Meninos mais expostos

Resolução do Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar), de fevereiro, diz que anúncios de apostas online precisam indicar que a atividade é restrita a menores e não devem usar “símbolos, recursos gráficos e animações, linguagem, personalidades ou personagens reconhecidamente pertencentes ao universo infanto-juvenil”. E a propaganda só pode ser feita por “influenciadores que tenham adultos como seu público-alvo”.

Para a coordenadora do eixo digital do Instituto Alana, Maria Mello, as regras não são suficientes. Ela se preocupa especialmente com meninos, pela forte ligação com o futebol, além da falta de controle efetivo do sites de apostas para verificação etária.

“É preciso uma ação mais sistêmica”, diz. Além da fiscalização e regulamentação eficazes, Maria recomenda campanhas para famílias e escolas sobre como falar do assunto.

Questionado sobre o atrativo das bets para crianças e adolescentes principalmente pela ligação com o futebol, Magnho José diz que as bets seguem as regras de publicidade para o público. “O problema não é o jogo. São esses influenciadores que passam mensagem de que você vai ficar rico. O jogo é entretenimento e nada mais que isso, não é meio de vida”, afirma.

Em nota, o Ministério da Educação (MEC) diz que a educação financeira faz parte da Base Nacional Comum Curricular, que as transformações com o uso de novas tecnologias são “imprescindíveis para inserção crítica e consciente” e devem ser incorporadas pelas redes de ensino e escolas. Afirma ainda induzir a abordagem disso a partir de ações como a Estratégia Nacional de Educação Financeira (Enef) e formação de professores.

Já a pasta da Saúde afirma ampliar o atendimento para problemas de saúde mental, incluindo jogo patológico. E diz que foram habilitados mais novos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) este ano, sendo 314 exclusivos para crianças, adolescentes e jovens.

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Como falar sobre riscos de bets com crianças e adolescentes? Veja dicas
Estudos mostram que jovens têm mais possibilidade de se viciar em jogos de azar do que adultos pela imaturidade biológica e emocional; pais devem evitar discurso alarmista, dizem especialistas

A proximidade com o futebol, os games e o celular fizeram com as bets, plataformas de apostas esportivas online, entrassem no universo de crianças e adolescentes com uma força que preocupa escolas, famílias e especialistas.

O maior risco é a forma como as apostas esportivas são apresentadas, o que atrai fortemente crianças e adolescentes. A publicidade ostensiva online e offline, com influenciadores e até medalhistas olímpicos, durante o jogo de futebol, na camisa dos times, nas redes sociais, normaliza as bets e faz com que pareçam saudáveis e divertidas.

A falta de regulamentação no País, que só agora começa a ser enfrentada, também permite que o público infanto-juvenil fique desprotegido e tenha acesso a uma atividade proibida para menores. O Instituto Jogo Legal, entidade que representa o setor, diz que o problema está nos sites irregulares.
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Para Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e da adolescência, as famílias devem ter cuidado com o tom para abordar o problema. “Tem mãe e pai com discurso alarmista para tudo. Aí as bets vão entrar em mais um grupo de coisas que os pais trazem”, afirma.

“Nesses casos, as crianças começam a desenvolver senso de alarme para tudo, com medo do mundo, ou passam a bater de frente e a testar tudo porque não conseguem mais discernir”, acrescenta ele, pesquisador do Instituto Ame Sua Mente. (Estadão)

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Educação financeira contra vício em bets ajuda, mas é preciso mais; entenda
Pressão de influenciadores, facilidade de acesso a apostas em celulares e funcionamento do cérebro exigem que políticas olhem também para a psicologia e o comportamento, dizem especialistas

A educação financeira ajuda, mas não é suficiente para afastar crianças e adolescentes do vício nas bets, as apostas esportivas online. É o que dizem os próprios especialistas em educação financeira.

“Há uma pressão grande de influenciadores, o futebol, a facilidade, o hábito de usar celular, e ainda a ilusão de gratificação imediata. O caminho está aberto demais para que esse comportamento surja”, diz a doutora em psicologia econômica, consultora e membro do comitê de pesquisa da International Network for Financial Education da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Vera Rita de Mello Ferreira. “Educação financeira não é a salvação da lavoura.”

Ela explica que, sim, é preciso educar crianças e jovens a usar conscientemente o dinheiro porque são hábitos mais fáceis de serem trabalhados cedo. No Brasil, segundo dados do Pisa, avaliação de educação da OCDE, 71,7% dos estudantes de 15 anos não conseguem fazer cálculos de um orçamento. A maioria também não entende como funcionam os empréstimos nem sabe analisar extratos bancários.

No caso dos jogos de azar, diz Vera, é preciso “bombardear” com informações sobre pessoas que se endividaram e de como eles são estruturados para que, sempre, se perca mais do que se ganhe. No entanto, as apostas esportivas online são um fenômeno novo e sequer fazem parte da maioria dos currículos de educação financeira.

Para ela, as políticas públicas precisam olhar também para questões de psicologia, do comportamento, de regulamentação, de proteção do consumidor e também de como é feita a arquitetura para atrair a população de todas as idades para as apostas.

Caso contrário, só informação não resolve. “É como o bilhete da loteria que está escrito atrás que a chance de ganhar é uma em 50 milhões. Ninguém deixa de apostar por isso.”

Crianças veem como desafio

As ciências do comportamento mostram como o cérebro vai em busca de recompensas intermitentes, como nos mecanismos de apostas, em que ganhos são intercalados com perdas. Isso leva o cérebro a acreditar que elas voltarão a ocorrer.

No caso das crianças, diz Vera, há ainda o fato de que elas entendem o jogo como brincadeira e não compreendem ainda o valor real do dinheiro. “Tem ainda o efeito de manada: ‘todo mundo joga na escola e não quero ficar de fora’. E o desafio de aprender a fazer aquilo, é como aprender a amarrar sapato, ele quer saber os macetes”, completa.

A professora de Matemática Meire Ribeiro, de uma escola estadual em São Vicente, no litoral paulista, diz que já notou que “saber jogar nas bets” confere “status” a certos alunos na classe. “Eles pedem para esses colegas jogarem pra eles e também pedem dinheiro emprestado”, conta.

Este mês, ela trabalhou pela primeira vez o assunto nas aulas de educação financeira – que faz parte de um itinerário formativo do ensino médio na rede – em seis salas e notou como o assunto interessa. Mas sentiu dificuldade em conseguir convencê-los dos riscos. “São meninos pobres, que muitas vezes passam necessidade. Veem os influenciadores e acham que vão enriquecer facilmente.”

O material da Secretaria Estadual da Educação traz vídeos em que especialistas falam de histórias de endividamento e riscos para a saúde mental. A professora conta que ainda ajudou alunos a fazerem contas de quanto já apostaram para mostrar que perderam mais do que ganharam. “Eu estava preocupada desde o começo do ano, mas você tem de saber lidar com os adolescentes. Não dá para tirar o celular nem fazer ele parar de jogar de uma hora para outra.”

Para Vera, uma das soluções seriam grandes campanhas com “marketing de sinal trocado” mostrando, por exemplo, histórias de pessoas que tiveram muitos problemas com o jogo, tanto financeiros quanto de saúde mental. “É preciso juntar forças, famílias e escolas, com regulamentação, trabalho com influenciadores, com adolescentes que são considerados líderes. Mas é tudo muito novo.”

Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia econômica, diz que educação financeira precisa vir acompanhada também de políticas que olhem para a psicologia e o comportamento. Foto: Vera Rita de Mello Ferreira

Bom senso para falar dos riscos

O pesquisador do Instituto Ame Sua Mente Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e da adolescência, também considera que educação financeira não é suficiente e fala da importância de os pais alertarem para riscos, mas com bom senso e equilíbrio.

“Tem mãe e pai com discurso alarmista para tudo. Aí as bets vão entrar em mais um grupo de coisas que os pais trazem. Nesses casos, as crianças começam a desenvolver senso de alarme para tudo, com medo do mundo, ou passam a bater de frente e a testar tudo porque não conseguem mais discernir.”

Ele lembra ainda que as apostas podem ser até mais perigosas se aparecerem em situações de tédio, tristeza ou baixa autoestima dos adolescentes. “Elas acabam entrando na vida deles para reduzir algum desconforto e, por isso, tendem a ser mais viciantes. Ele joga para reduzir a tristeza, se sentir melhor.” (Estadão)

 

 

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