O progresso que não é fruto da sorte

Destaque I 31.10.16

Por: sync

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Cauê C. Bocchi*

O Brasil é um dos únicos países não islâmicos que proíbem o jogo em seu território. Os cassinos, por exemplo, são proibidos no país desde o dia 30 de abril de 1946, quando o então presidente General Dutra proibiu a atividade no país. É curioso notar que a proibição foi feita por meio de um decreto-lei, o que significa que o poder legislativo não foi ouvido. Mais curioso ainda é saber que duas das justificativas mais famosas para a referida proibição são no mínimo bastante triviais: a primeira é que se tratava de um pedido da mulher de Dutra, Carmela Dutra – chamada pelos íntimos de Dona Santinha por conta de sua extrema religiosidade – que teria exigido do marido a proibição dos cassinos porque a atividade supostamente feriria a moral e os bons costumes da nação; a segunda pelo fato do glamour dos cassinos remeterem à Era Vargas e o respectivo desejo do General Dutra de acabar com qualquer espécie de vínculo com o seu antecessor.

Mais de setenta anos depois de uma proibição que parece não ter derivado de sólidos fundamentos político-econômicos, o Brasil está perto de decidir se a atividade ligada à indústria do jogo – o que inclui não somente cassinos, mas também bingos, loterias esportivas, jogo do bicho, etc. – poderá voltar legalmente à atividade no país. Existem dois projetos de lei distintos, um na Câmara e outro no Senado, que tratam sobre a legalização do jogo de azar: o Projeto de Lei do Senado nº 186/2014 (PLS 186/14) e o Projeto de Lei nº 442/1991 (PL 442/91). O PLS 186/14 faz parte da Agenda Brasil para a retomada do crescimento econômico, e a versão final do substitutivo do projeto, feito pelo senador Fernando Bezerra (PSB/PE), deve ser votada nas próximas semanas na Comissão de Desenvolvimento Nacional do Senado. O PL 442/91, por sua vez, tem chances reais de ser pautado para votação no plenário da Câmara ainda em 2016, e há um grupo bastante atuante de deputados que agem para que isso ocorra o quanto antes. Além disso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), já indicou ser favorável ao projeto. 

Caso o PLS 186/14 seja aprovado primeiro, ele seguirá para a Câmara e os deputados terão a oportunidade de sugerir eventuais melhorias para que o projeto seja votado; caso, por outro lado, o PL 442/91 seja o primeiro a ser aprovado, ele segue para o Senado, segundo a mesma lógica. Independentemente de qual seja o projeto que siga em frente – se o PLS 186/14 com possíveis contribuições derivadas do PL 442/91 ou o contrário – fato é que as críticas contra a legalização do jogo permanecem as mesmas. São elas: (i) o jogo facilita a lavagem de dinheiro; (ii) o jogo é uma atividade que pode viciar (ludopatia); (iii) o jogo não gera um incremento de receita aos cofres públicos, somente altera a opção de consumo do jogador; e (iv) o jogo é uma atividade imoral e contrária aos preceitos religiosos que guiam grande parcela da população brasileira. 

Lavagem de dinheiro

É verdade que é possível lavar dinheiro com jogo. Da mesma forma, é possível lavar dinheiro com construtoras, empresas petrolíferas, etc. Em suma, é possível lavar dinheiro em qualquer atividade econômica, e é função dos agentes fiscalizadores impedir que isso aconteça. Apesar de toda a lavagem de dinheiro envolvendo muitas das principais construtoras do país, ninguém advoga o fim dessa atividade; de maneira análoga, ninguém é capaz de dizer que a exploração do petróleo deve acabar porque houve prática de lavagem de dinheiro no setor. Por que com o jogo é diferente? A impressão que se tem é que as críticas nesse sentido partem dos filmes e do imaginário popular sobre as origens de Las Vegas, transportando-se a priori esse cenário para a realidade brasileira. Além das óbvias e gritantes diferenças entre o mercado brasileiro e norte-americano, essa crítica constitui um exercício de futurologia que não pode ser admitido no debate sério. Há outra consideração, mais pragmática, contra a crítica de que o jogo seria usado para lavagem de dinheiro: a tributação prevista para a indústria do jogo é bastante elevada, e é possível lavar dinheiro em atividades com menor tributação; ou seja, lavar dinheiro com o jogo não é racional, economicamente falando.

Ludopatia

Em relação ao vício no jogo, ou ludopatia, é importante deixar claro que a própria legislação proposta cria mecanismos para combater o vício no jogo. Além da previsão de campanhas educativas e dever de informação sobre os riscos envolvendo a prática, o caput do artigo 16 do PL 442/91, por exemplo, prevê a criação de um cadastro especial para ludopatas, para que essas pessoas sejam impedidas de realizar apostas ou tenham acesso limitado a elas. É importante ainda ressaltar que a inclusão de determinada pessoa no cadastro de ludopatas pode derivar de ordem judicial pleiteada por algum parente dessa pessoa, de maneira análoga com o que ocorre com a legislação portuguesa. Nesse sentido, o tratamento direto que a legislação pode dar ao problema da ludopatia talvez seja uma das melhores armas para o enfrentamento dessa doença: proibir o jogo somente fará com que o ludopata alimente o seu vício em estabelecimentos ilegais, esses sim capazes de fazer com que essas pessoas sejam vítimas de tragédias pessoais e familiares.

Ainda sobre a ludopatia, além do enfrentamento que a legislação propõe sobre o tema, é importante salientar que determinada atividade econômica não pode ter a sua permissão ou proibição pautada em um grupo de pessoas – não constituintes da maioria – que tenha um problema potencial com ela: se assim fosse, as bebidas alcoólicas deveriam ser proibidas por conta dos alcoólatras, ou as comidas gordurosas por conta dos obesos, etc. Não é preciso prosseguir com os exemplos para se constatar a inadequação da proibição do jogo em decorrência do potencial vício que ele pode gerar. Proibir, em suma, é a solução preguiçosa daqueles que preferem varrer o problema para debaixo do tapete.

Alteração a opção de consumo

A crítica que diz que o jogo somente desloca o padrão de consumo do jogador, fazendo com que ele, por exemplo, opte por jogar ao invés de ir ao cinema, tenta rebater um dos principais argumentos favoráveis à legalização do jogo no país: a geração de receitas tributárias de até R$ 20 bilhões ao ano sem qualquer aumento de impostos.  É verdade que o consumidor poderá optar pelo jogo em detrimento de outra atividade, e o poder de escolha sobre o que se fazer com o próprio dinheiro costuma ser um bom parâmetro para se identificar o respeito às liberdades individuais e não deveria, portanto, constituir uma crítica à atividade. A questão, porém, não se encerra aqui: a legalização do jogo no Brasil deverá gerar investimentos estrangeiros no Brasil que não viriam de outra forma. Deixando o exemplo mais claro: se os cassinos forem permitidos no Brasil, é bastante provável que alguns dos principais players internacionais do setor queiram atuar no país; caso os cassinos não o sejam, por outro lado, esses grupos internacionais não farão investimentos em portos ou estradas como alternativa para o dinheiro que estava disponível para investir: somente não haverá qualquer investimento no Brasil. Na prática, isso quer dizer que a indústria do jogo vai gerar receitas tributárias não somente em detrimento de outras atividades, mas também e especialmente em adição àquelas geradas por outras atividades. Além disso, somente no caso dos cassinos, espera-se a geração de mais de 150 mil empregos diretos, o que não é nada ruim em um país com mais de doze milhões de desempregados. Esses empregos diretos significam um poder de consumo que hoje não está disponível, e que pode ser benéfico para a totalidade do mercado, não somente para a indústria do jogo.

Questão religiosa

Por fim, o último argumento importante contra a legalização do jogo no Brasil é de ordem religiosa e moral: assim como a Dona Santinha em 1946, boa parte da crítica é contrária ao jogo porque a prática seria contrária à moral e aos bons costumes. Na Câmara dos Deputados, o maior lobby contrário à legalização dos jogos é da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), para a qual o argumento moral assume maior protagonismo. A primeira parte da resposta ao argumento moral é bastante simples, quase trivial: aqueles que são contrários à prática do jogo não precisam jogar, mas não deveriam ter o direito de interferir na decisão daqueles que o querem. Trata-se aqui de um princípio básico de liberdade individual, e na medida em que o jogo diz respeito somente àquele que joga (excetuados os casos previstos de ludopatia, já considerados aqui), cada um deveria ser livre para escolher se quer ou não jogar.

No que diz respeito à substância do argumento religioso, em que pese o respeito que se deve prestar à Frente Parlamentar Evangélica, a verdade é que não existe qualquer previsão na Bíblia em que Deus proíba a prática do jogo. É curioso notar, inclusive, que em diversas passagens da Bíblia o curso de ação a ser seguido é deixado propositadamente ao acaso, assemelhando-se bastante à lógica do jogo: em Neemias 11:1-3, por exemplo, decidiu-se na sorte uma pessoa entre dez para morar em Jerusalém, e as nove restantes permaneceram em suas respectivas cidades; em Josué 14:2, estabelece-se um sorteio para a divisão da herança de Israel entre as nove tribos e meia; em Atos 1:26, Matias substitui Judas como o décimo-segundo apóstolo como resultado de um sorteio feito pelos outro onze apóstolos. Esses são somente alguns dos diversos exemplos sobre como a Bíblia se utiliza intencionalmente do acaso para decidir questões da maior importância. Nesse sentido, parece no mínimo contraditório que o homem comum não possa – lúdica e moderadamente – deixar que a emoção do acaso governe o desfecho do seu futuro imediato.  A intenção desses exemplos não é fazer com que aqueles que são contra o jogo por motivos religiosos passem a ser a favor da prática: a intenção aqui é somente deixar claro que até o argumento religioso pode ser interpretado de maneira diversa, e que isso faz com que a tolerância – atributo sagrado e estimulado por Deus, diga-se de passagem – seja talvez a única solução racional e religiosamente possível no enfrentamento da questão do jogo. Nesse sentido, nada é mais contrário à tolerância do que a proibição pura e simples do jogo. Nada impede, por óbvio, que um pastor evangélico desestimule a prática do jogo entre os seus fiéis, ou que condicione tal prática ao cumprimento de todas as virtudes cristãs, como o pagamento do dízimo, por exemplo. A distância, contudo, entre o aconselhamento moral e religioso e a proibição legal de determinada atividade é enorme, e é importante que todos os envolvidos tenham consciência dela.

Singapura x Rússia

Singapura, um dos países que costumam ser citados como exemplo de civilidade e segurança, legalizou o jogo em 2010, e não se tem qualquer notícia sobre o avanço do crime organizado, lavagem de dinheiro, problemas de saúde pública derivados da ludopatia ou um cenário de devassidão moral por conta da legalização: o país continua tão seguro e civilizado quanto sempre foi. A diferença é que agora o país de pouco mais de cinco milhões de habitantes conta com uma indústria de mais de R$ 20 bilhões ao ano e que cresce a um ritmo superior a vinte por cento ao ano. A Rússia, por outro lado, proibiu em 2006 os cassinos nos principais centros urbanos do país e isso só fez com que diversos cassinos ilegais surgissem e fossem operados pelo crime organizado. O que o Brasil precisa entender é que o jogo sempre vai existir, seja ele ilegal ou legal: na primeira opção, continuaremos próximos do exemplo russo, país no qual governo e crime organizado são quase uma só entidade; no segundo exemplo, o jogo poderá ser um catalisador de receitas tributárias e turísticas, além de um gerador de centenas de milhares de empregos e investimentos diretos. Não é preciso contar com a sorte para saber qual é a opção adequada.

(*) Cauê C. Bocchi é advogado, professor de redação, coach de startups, diretor da Editora Libertar e do Instituto Cairu. Cauê foi candidato a vereador pelo Partido Novo em São Paulo e não se elegeu.

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