Regulação de apostas no exterior tem regras duras para ‘jogo seguro’
A preocupação das autoridades brasileiras com o risco de plataformas de apostas e jogos de azar on-line causarem vício e aumento do endividamento de famílias, tendo como pano de fundo a regulação do setor no país, também esteve em pauta nas nações que legalizaram essa atividade há mais tempo, informa reportagem do O Globo.
Na maioria delas, a ludopatia (como é chamado o vício em jogo) é tratado como um problema de saúde pública e até clínicas especializadas foram criadas. Para evitar que os apostadores contraiam dívidas elevadas e fiquem inadimplentes, alguns países estabeleceram limites no valor das apostas e limitações na publicidade.
Especialistas no setor apontam que a regulamentação brasileira, prevista para entrar em vigor em janeiro e que teve algumas exigências antecipadas para o mês que vem, vai no mesmo caminho, com medidas para prevenir e mitigar efeitos colaterais, incluindo multas pesadas para plataformas que descumprirem regras.
Programas de educação para prevenir o jogo excessivo são um ponto levado a sério pelos órgãos reguladores criados em vários países para fiscalizar e garantir que as regras sejam cumpridas pelas operadoras. No Brasil, uma secretaria foi criada no Ministério da Fazenda para essa função e vai exigir monitoramento dos CPFs dos apostadores. Nos EUA e no Reino Unido, por exemplo, jogadores com comportamento considerado compulsivo são excluídos das plataformas.
— Países que já regularam as apostas on-line criaram políticas de jogo responsável, que é o conjunto de regras para proteger o apostador contra o jogo excessivo e suas mazelas, como o endividamento e o vício. É um dos princípios mais caros da indústria e por isso defendida por operadores sérios para criar um ambiente saudável nesse segemento — explica Jun Oyafuso Makuta, sócio da área de gaming e e-Sports do TozziniFreire Advogados.
Brunno Giancoli, professor de Direito do Ibmec São Paulo, que acompanha o setor, lembra que países como EUA (onde a legislação das bets é estadual), Holanda, Bélgica e Luxemburgo adotaram tributação específica sobre a atividade, bem acima dos impostos cobrados de outros segmentos, com os recursos sendo destinados a políticas públicas para tratamento do vício.
— São impostos altos, similares aos cobrados de cigarros, com alíquotas de 30% a 40%, e as verbas são destinadas à saúde — explica Giancoli.
Estados americanos como Nova Jersey e Nevada adotaram limites financeiros para jogadores ou banimento de plataformas em caso de abuso, além de campanhas para alertar os jogadores sobre os perigos do vício. Em Nova York, há inclusive um executivo nomeado como autoridade para fiscalizar a atividade, à frente de um órgão regulador estadual.
As regras no estado são revisadas anualmente para inserir travas necessárias de acordo com o comportamento dos jogadores.
Em outros países, a fiscalização cabe a um órgão federal. A Comissão de Jogos do Reino Unido, por exemplo, foi criada em 2005. Em 2020, a Alemanha instituiu a Nova Autoridade Reguladora de Jogos de Azar. Para Giancoli, do Ibmec, esse tipo de vigilância dá mais transparência à atividade, já que é verificado inclusive se cada plataforma tem patrimônio para garantir o pagamento das apostas e combater fraudes financeiras, como o uso dos jogos para a lavagem de dinheiro.
Nos estados americanos, indícios de atividades ilícitas detectados podem facilmente cassar a licença da operadora. Segundo Giancoli, a ênfase na proteção do consumidor é muito forte nos EUA, com as agências estaduais de jogos funcionando como “verdadeiros Procons”.
No Reino Unido, onde a legalização dos jogos on-line ocorreu há quase duas décadas e as regras para esse mercado se tornaram uma referência internacional, há um sistema que verifica a “acessibilidade financeira” do apostador numa espécie de cadastro positivo.
Avalia se a pessoa tem recursos para apostar sem comprometer sua saúde financeira, explica Eduardo Galvão, diretor da consultoria Burson Brasil e professor de Relações Institucionais do Ibmec Brasília. A análise é feita em tempo real com os bancos quando alguém faz apostas muito altas ou sucessivas tentando recuperar prejuízos.
— Quando a pessoa está gastando muito, há inclusive exigência de que seja apresentado um comprovante de renda para evitar inadimplência ou endividamento. E, em casos extremos, existe o mecanismo em que a pessoa é excluída da plataforma e não pode apostar — diz Galvão.
No Reino Unido, a Comissão de Jogos baniu o uso de cartões de crédito em apostas, medida que entre em vigor no Brasil na próxima terça-feira. Ricardo Bianco Rosada, da brmkt.co, consultoria de estratégia e desenvolvimento de negócios, destaca que a legislação britânica também tem um forte foco em mensagens de jogo responsável e pausas obrigatórias para quem apresentar comportamento problemático:
— Há ferramentas de autolimitação, ou seja, que impõem limites diários e semanais de apostas ao consumidor. Elas são obrigatórias nas plataformas.
Mesmo com mecanismos de prevenção sejam obrigatórios, o vício em jogos existe nesses países. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 1% e 2,8% da população mundial podem apresentar ou desenvolver a ludopatia. O serviço de saúde inglês estima que cerca de 3 mil pessoas por ano busquem o NHS, o sistema público de saúdes, com esse problema.
Há 15 clínicas públicas específicas para vício em jogos no país, que estuda cobrar um imposto adicional de 1% (além dos 15% que as plataformas de jogos já pagam) para financiar pesquisas, prevenção e tratamento do vício em jogos de azar. A estimativa é que podem ser arrecadados £ 100 milhões (R$ 726,5 milhões) por ano.
Segundo Rosada, a Alemanha introduziu um limite mensal de € 1.000 (R$ 6,07 milhões) por jogador, e os operadores são obrigados a monitorar o tempo de jogo e intervir caso haja sinais de compulsão. Na França, observa o especialista, as plataformas têm a mesma obrigação. O sistema de autoexclusão também é utilizado, permitindo que jogadores se retirem temporariamente ou permanentemente das plataformas.
O especialista da brmkt.co afirma que está crescendo o uso de tecnologia na prevenção a problemas com jogos on-line. Softwares desenvolvidos pela Neccton, empresa de Viena, na Áustria, que trabalha com ciência de dados, usam inteligência artificial (IA) e machine learning (aprendizado de máquina) para identificar padrões de jogo compulsivo entre apostadores em tempo real. Foram adotados por várias operadoras de apostas e jogos no mundo para cumprirem a legislação.
— Esses softwares monitoram comportamentos como apostas excessivas ou tentativas frequentes de recuperar perdas, alertando os operadores e sugerindo intervenções personalizadas — explica.
Além de Reino Unido, Austrália e Suécia têm modelos considerados referência de regulação das bets, em que a prevenção ao vício é respaldada por fortes programas de educação desenvolvidos pelos governos. Existem até fundos especialmente criados para esse fim com recursos das próprias operadoras.
Além da proibição de apostas de menores, fazem parte desse pacote educativo as restrições à publicidade. Espanha e Itália, por exemplo, já limitaram o patrocínio das bets em camisas de times de futebol.
— No Brasil, onde não existe o hábito de poupar, e o acesso à educação financeira é restrito, esses programas de educação serão fundamentais para ajudar a prevenir o vício, evitando que o estado tenha aumento de custos com tratamento no sistema público de saúde — avalia Eduardo Galvão, diretor da consultoria Burson Brasil.
O especialista observa que os dados divulgados recentemente pelo Banco Central (BC) mostrando que inscritos no Bolsa Família movimentam bilhões em apostas traz um alerta importante para a regulação das bets no país. Somente em agosto, cinco milhões de beneficiários do programa destinaram R$ 3 bilhões a plataformas de jogos e apostas via Pix.
Para os especialistas, as regras brasileiras para apostas esportivas, as bets, e jogos do tipo cassino on-line têm mostrado preocupação com o jogo responsável. Além de previsto na lei 14.790, o jogo responsável mereceu uma portaria específica do governo, que contém regras como promoção e publicidade saudável e “prevenção e mitigação de malefícios individuais e coletivos decorrentes da atividade”. Por isso, a expectativa é de que haja maior controle da atividade com as regras em vigor.
— Ou seja, a regulação brasileira reconhece os riscos associados ao vício, ao endividamento, e à publicidade irresponsável, que vende a ideia da possibilidade de enriquecimento através do jogo, e cria mecanismos para combater e mitigar tais riscos — afirma Jun Makuta, do TozziniFreire Advogados.
A legislação brasileira também obriga os operadores a terem políticas internas de proteção do apostador, com regras sobre limitação de apostas, autoexclusão da plataforma, realização de pausas, mesmos pontos adotados em outros países. O não cumprimento desses pontos pode levar a suspensão das atividades da operadora e multa de até R$ 2 bilhões.
A decisão do Ministério da Fazenda de antecipar para outubro a proibição para a operação de empresas que não solicitaram autorização é destacada pelos especialistas como importante para permitir que o governo adote medidas contra plataformas operando à margem da regulação.
Na sexta-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, gravou um depoimento sobre as bets afirmando que, apesar do atraso na regulamentação (que foi aprovada em 2018), o país agora tem os instrumentos necessários para realizá-la:
— É um assunto delicado para a família brasileira. O presidente Lula já falou com os ministérios da Fazenda, Saúde, Desenvolvimento Social e Esporte para coibir a questão da dependência dos jogos, fazer monitoramento de CPFs para saber quanto a pessoa está apostando. Também será verificado que meios de pagamento estão sendo utilizados, de forma a coibir o endividamento, além de ter publicidade regulada e banimento das empresas não credenciadas. O Brasil vai sair na frente em relação a esses tópicos.