‘Senti que eu precisava levar tudo pronto, com provas concretas’, diz presidente do Vila Nova
Dois objetos não passam despercebidos no gabinete de Hugo Jorge Bravo, presidente do Vila Nova Futebol Clube e major da Polícia Militar de Goiás: um crucifixo de madeira de quase um metro de comprimento pendurado na parede e um taco de beisebol com a inscrição “Resultado!!!” sobre sua mesa de trabalho. Enquanto fala, ele faz menções frequentes à sua religião (“Sou cristão”, “Deus regenera”) e a seus feitos na PM (“A gente reprime mesmo!”).
Em novembro do ano passado, Bravo resolveu usar suas credenciais de policial e cartola para investigar por conta própria a denúncia de que um atleta de seu clube havia recebido dinheiro para manipular uma partida. De posse das provas, ele procurou o Ministério Público — a investigação aberta graças a ele já encontrou provas de que o esquema de apostas ilegais chegou à Série A; 15 jogadores se tornaram réus na Justiça.
Em entrevista ao GLOBO, Bravo revelou que, desde que assumiu o clube, em 2019, já havia procurado autoridades para denunciar manipulação de dois jogos do Vila Nova, na Série C e na Copa Verde. “Na época ninguém foi atrás. Senti que precisava levar tudo pronto”, afirmou.
Qual foi o primeiro caso de manipulação no futebol que chegou aos seus ouvidos?
A primeira vez que ouvi sobre uma denúncia de manipulação foi em 2020. O joga era Vila Nova e Imperatriz, pela Série C, no Maranhão (o jogo terminou 3 a 1 para o Vila Nova). O time do Imperatriz procurou um atleta do Vila para dizer que a partida estava vendida. Na época, eu fiquei sabendo, mas não consegui reunir provas. A segunda vez que uma denúncia do tipo chegou até mim foi no Vila Nova e Nova Mutum, pela Copa Verde, em 2021 (o jogo terminou 3 a 0 para o Vila). Fiquei sabendo que, no vestiário do nosso estádio, antes do jogo, um jogador deles fez uma chamada de vídeo para um apostador para dizer que o acordo estava fechado.
Como você soube desse caso?
No jogo da volta, o pessoal da cidade, no Mato Grosso, me procurou e me contou que a aposta não tinha dado certo. Não sei exatamente o que eles haviam apostado, mas o que eu sei é que depois vários jogadores do clube passaram a ser ameaçados de morte pelos apostadores por causa do prejuízo.
Você denunciou esses casos à polícia ou ao MP na época?
Quando eu tomei pé da situação, eu comuniquei a uma autoridade, que não vou citar quem é. Mas, na época, ninguém foi atrás. Não chegaram nem a ouvir o jogador, os dirigentes. Senti que eu precisava levar tudo pronto já, com provas concretas.
E como nasceu sua denúncia que culminou na Operação Penalidade Máxima?
Dois dias depois do jogo contra o Sport, pela Série B, em novembro do ano passado, uma pessoa ligada ao jogador Romário (Marcos Vinicius Alves Barreira), que era do Vila, me procurou para dizer que ele estava sendo pressionado por causa de uma aposta que tinha dado errado. Alguém estava ameaçando o Romário para que ele pagasse pelo prejuízo. Eu perguntei quem era a pessoa que estava cobrando e me passaram o perfil dele no Instagram (Bruno Lopez, hoje preso acusado de chefiar o esquema de manipulação de jogos do Brasileirão). Era tudo que eu precisava.
Aí você tomou a iniciativa de procurar esse apostador?
Sim, aí entrou na minha área, sou policial. A minha condição me obriga a agir, não podia me omitir. E, por outro lado, eu não tenho medo desses caras, já estou acostumado a lidar com organizações criminosas, com ladrões, traficantes. Primeiro, identifiquei o apostador e consegui seu número do telefone. Então, fiz contato pelo WhatsApp. Escrevi que estava à disposição para entender o que estava acontecendo.
Ele acreditou?
Eu disse: “Estou aqui para te ajudar”. Inicialmente, ele me ligou e conversei com ele por chamada de voz. Aí ele foi abrindo: disse que tinha um acerto para que três jogos da última rodada da Série B tivessem pênalti no primeiro tempo. O jogador que ele procurou aqui foi o Romário, que não ia jogar e ficou responsável por cooptar algum outro jogador. Ele recebeu R$ 10 mil de sinal.
Se o pênalti acontecesse, receberia mais R$ 140 mil. Só que nenhum outro jogador aceitou. E, como o pênalti não aconteceu, os apostadores estavam cobrando o prejuízo. Como eu sabia que precisava produzir provas mais concretas, fui ganhando a confiança e induzi ele a escrever no aplicativo, para deixar tudo registrado. De posse das mensagens, procurei o Ministério Público.
Por que o apostador decidiu confiar em você?
Eu me apresentei como a pessoa que ajudaria ele a resolver o problema. Disse que iria ajudar ele a ser pago. Ele não tinha a quem recorrer. Quando eu apareci, ele pensou que eu conseguiria o dinheiro dele. Por isso, falou tudo.
O Romário confirmou a história?
Eu mandei ele embora na hora. A quebra de confiança foi imediata. Paguei tudo o que devia e rescindi o contrato dele, nem esperei o MP avançar na investigação. Não dei nem espaço para ele argumentar. Se pisou na bola comigo, é tchau. O outro jogador envolvido, o Domingos (Gabriel Domingos, também denunciado pelo MP por participar do esquema), eu esperei a apuração. Quando eu vi que ele também não era santo, também rescindi por justa causa. Não admito isso aqui.
Houve alguma conversa com o elenco sobre a questão das apostas após as demissões?
Quando fiquei sabendo, reuni todo mundo e disse que iria até o fim. Disse: “Quem tiver envolvido, pede pra sair agora, porque vai ser punido”. Isso foi ainda em 2022. Eu nunca imaginava que isso ia acontecer logo aqui, todos os jogadores sabem que eu sou polícia.
Você sabia que o esquema era tão grande e chegava até na Série A?
Sim. É dinheiro fácil, é muito atrativo. Quem não tem caráter não tem limite na ganância. E isso independe de quanto o cara ganha. Eu sabia que, se investigasse, chegaria à Série A. Mas tinha que começar por algum lugar.
E a punição esportiva aos jogadores cuja participação no esquema for comprovada, qual deve ser?
Eu acho que esses jogadores têm que ser banidos do futebol. A manipulação de jogos causa uma quebra numa relação de confiança que é a base do esporte. É essa imprevisibilidade que torna o futebol apaixonante, que mexe com o sentimento de milhões de pessoas pelo mundo. Não podemos brincar com a paixão de um país inteiro. É por isso que não podemos ser lenientes. Acho que a CBF já deveria ter agido de forma mais rápida quanto aos primeiros atletas identificados, em fevereiro. Eles já deveriam ter sido suspensos. E os novos nomes que surgiram também devem ser suspensos logo. A resposta precisa ser rápida e enérgica para estancar essa situação.
Qual a sua opinião sobre a regulamentação das apostas esportivas no Brasil?
Eu sou 100% a favor. Tem que regulamentar. E algumas medidas são urgentes. Por exemplo: ações individuais, como o cometimento de pênalti, falta ou punição com cartão amarelo ou vermelho, não podem ser objeto de aposta. Esse tipo de aposta favorece a manipulação, porque só depende da ação de um jogador e não de diversos fatores. Se abre uma porta para o jogador procurar benefício individual em detrimento do clube. Outra coisa: campeonatos menores, divisões inferiores e torneios de base não podem ter aposta. São mais suscetíveis à manipulação. (O Globo – Rafael Soares, Goiânia)