Streamings, bets e PIB pressionam balança de serviços
O aprofundamento do déficit na balança de serviços do Brasil, relacionado a impulsos de streamings, bets e uma economia aquecida, chama a atenção dos economistas e pressiona as transações do país com o mundo, registra reportagem do VALOR.
A balança representa a troca de serviços entre residentes no Brasil e não residentes. Historicamente, a balança de serviços brasileira é deficitária, porque há mais contratação, no Brasil, de serviços no exterior do que compras de serviços brasileiros por estrangeiros.
Em 2024, no entanto, a balança de serviços do Brasil já acumula déficit de US$ 36,6 bilhões até setembro, o maior para momento equivalente desde 2014, quando alcançou rombo recorde do período de US$ 42,1 bilhões. No ano passado, até setembro, o déficit em serviços era de US$ 28,7 bilhões.
“Quando tem uma economia que, lá atrás, em 2020 [início da pandemia], puxa o freio de tudo, naturalmente, vai começar a gastar mais com serviços e rendas depois”, diz Livio Ribeiro, sócio da consultoria BRCG e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre).
Junto com o superávit menor na balança comercial, o déficit mais acentuado em serviços ajuda a explicar por que a conta de transações correntes do Brasil supera por ampla margem o observado no mesmo período de 2023, passando de US$ 13,2 bilhões para US$ 37,3 bilhões até setembro.
“A balança de serviços é cada vez mais responsável pela ampliação do déficit em conta corrente”, escrevem, em relatório, o economista Vinicius Moreira, do J.P. Morgan, e Cassiana Fernandez, chefe de pesquisa econômica para América Latina e economista-chefe de Brasil do banco.
No primeiro semestre do ano, apontam, a ampliação do déficit em conta corrente ocorreu, principalmente, devido a maiores importações e menores exportações. “Mas esse processo estagnou recentemente”, afirmam. “Em vez disso, os dados mais recentes mostram o saldo de serviços como o principal impulsionador da deterioração do déficit externo.”
O movimento atual não representa, porém, apenas a normalização após o choque da pandemia, que, em 2020, levou a balança de serviços do Brasil ao menor déficit em 11 anos, de US$ 24,7 bilhões.
“Frete, viagem, propriedade intelectual, aluguel de equipamentos, isso está, em última instância, associado a uma economia que está mais rica. As pessoas podem viajar mais, mesmo que o câmbio atrapalhe um pouco. As empresas estão produzindo mais para exportar e precisam alugar equipamento marítimo”, diz Ribeiro.
Na carta deste mês, a gestora Adam Capital nota que as compras e remessas de dólares ao exterior têm aumentado, basicamente, nas contas ligadas à “economia real”. Como exemplo, a Adam destaca exatamente o déficit US$ 7,9 bilhões maior na balança de serviços até setembro de 2024, ante 2023.
Os maiores déficits têm sido registrados em serviços de transportes (de passageiros e fretes) e de aluguel de equipamentos, como plataformas de petróleo e veículos de transporte sem tripulação, com resultados negativos de US$ 13,8 bilhões e US$ 10,6 bilhões, respectivamente, nos 12 meses até setembro, segundo a MCM.
Após uma normalização dos preços de fretes internacionais depois do choque da pandemia, os preços de contêineres voltaram a subir no mundo desde o último trimestre de 2023, em meio a novos eventos geopolíticos, ambientais e econômicos, como restrições a rotas no Mar Vermelho e aumento de cargas nos portos chineses, observam André Matcin e Fernando Gonçalves, do Itaú Unibanco.
Os déficits dessas duas contas já vinham sendo acompanhados pelos economistas há algum tempo, mas eles destacam que, mais recentemente, outros serviços têm puxado o resultado negativo na balança de serviços.
O crescimento dos streamings, por exemplo, pressiona a conta de serviços de propriedade intelectual, diz Julia Nicolaci, economista da MCM. Em 12 meses até setembro, o déficit acumulado é de pouco mais de US$ 8 bilhões.
Esses serviços incluem taxas de uso de direitos de propriedade (patentes, marcas, direitos autorais, franquias etc.) e taxas de licenças para reproduzir e/ou distribuir propriedade intelectual. “Nessa conta, entram direitos de exibir conteúdo artístico, ou seja, canais de TV aberta ou streaming remuneram os donos dos direitos para incluir a série, filme ou o show em sua programação”, diz Nicolaci.
Outro fator de pressão são os serviços de telecomunicações, computação e informações, que, em 12 meses até setembro, têm déficit de US$ 7,6 bilhões. A conta inclui, por exemplo, transmissão de sons e imagens por cabo, radiodifusão, televisão via satélite, teleconferência, telefonia celular, entre outros. Não inclui, por outro lado, o valor das informações transmitidas e da rede de serviços de instalação e de banco de dados.
“Não há fator pontual, mas conjunto ligado à digitalização”, Julia Nicolaci.
“Essa conta reflete, basicamente, receitas e gastos com licenças de software e serviços de TI de forma geral”, diz Nicolaci. “Não parece haver um motivo pontual para o aumento das despesas, mas, talvez, um conjunto de fatores que dizem respeito a digitalização, adoção crescente do trabalho remoto nas empresas, maior número de cursos ministrados de forma remota e adoção de inteligência artificial.”
Os chamados “serviços de saúde, educação e outros culturais, pessoais e recreativos” também têm pressionado a balança. Nicolaci observa que, desde 2023, entram nessa conta as “bets”. “As remessas de brasileiros enviadas a casas de apostas estrangeiras aparecem como despesa”, diz. A conta fechou 2022 com superávit de U$ 77,2 milhões, mas, desde janeiro de 2023, passou a acumular déficits em 12 meses. Até setembro, o rombo chegava a US$ 4,7 bilhões.
Nicolaci pondera que não é possível isolar quanto do valor a mais é proveniente de apostas, porque a conta também inclui serviços relacionados à produção de filmes, rádio e programas de televisão, direitos de gravações musicais, aluguel de filmes e vídeos, e taxas cobradas por atores, diretores, e produtores para produções no exterior.
A ACE Capital calcula que, se a linha desses “demais serviços” está, agora, rodando a um déficit anualizado na casa de US$ 20 bilhões, o mercado de apostas é responsável por cerca de um quarto desse montante.
O déficit na conta de serviços de seguros também vem crescendo, ainda que menos que o demais – soma US$ 2,3 bilhões em 12 meses até setembro. Essa conta, diz Nicolaci, está muito atrelada aos serviços de transporte marítimo internacional de mercadorias. “Quando há uma guerra como a do Mar Vermelho, os prêmios de risco para as embarcações que passam por ali aumentam, isto é, as seguradoras cobram valores maiores para fazer aquele trecho. A alternativa de não passar pelas rotas de risco também implica em um custo maior, já que, geralmente, isso se traduz em mais tempo de deslocamento”, afirma.
A balança de serviços tem contribuído para um déficit em conta corrente mais acentuado. A MCM projeta que ele deve ficar entre US$ 50 bilhões e US$ 55 bilhões em 2024, o que corresponde de 2,3% a 2,5% do PIB. O J.P. Morgan ajustou recentemente sua projeção para o ano de 2,2% para 2,4% do PIB. No ano passado, o déficit em transações correntes foi inferior à metade disso, de US$ 21,8 bilhões.
Olhando à frente, economistas discutem se há uma mudança mais estrutural na balança de serviços brasileira. “O consumo desse tipo de serviço é algo que não apenas veio para ficar, como deve se intensificar cada vez mais com o passar do tempo, seja pelo surgimento de novas tecnologias, seja pelo aprofundamento das já existentes”, diz a ACE na sua carta deste mês, em referência a serviços como streamings e licenças de softwares.
A Itaú Asset Management estimou que a conta corrente do Brasil esteja perdendo em torno de US$ 30 bilhões por ano de um “fluxo novo”, englobando criptoativos – que, agora saíram da conta corrente e passaram para a conta financeira -, serviços de tecnologia (como de nuvem) e apostas esportivas, explicou o economista-chefe Thomas Wu em uma live em julho. “Não sei se esse fluxo é temporário, mas é como se existisse uma perda adicional estrutural de dólares aqui no nosso país”, disse. “Talvez, isso seja permanente.”
No geral, economistas consideram as contas externas ainda robustas no Brasil. Com a mudança, entre outras, na balança de serviços, porém, a ACE diz que a situação “é mais frágil” e o país dependerá cada vez mais de saldos comerciais altos para manter o déficit em conta corrente sob controle.