Tributação das bets e a desproporcionalidade da taxa de fiscalização
Nota técnica elaborada pelo Banco Central do Brasil e divulgada esta semana aponta que, ao longo de 2024, entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões mensais foram transferidos a empresas de apostas e jogos de azar. São cerca de 24 milhões de pessoas físicas, que realizaram ao menos uma transferência via Pix para tais empresas. Os maiores apostadores têm entre 20 e 30 anos e o valor médio mensal das apostas varia conforme a idade: “para os mais jovens, o valor gira em torno de R$ 100 por mês, enquanto para os mais velhos o valor ultrapassa R$ 3 mil por mês, de acordo com os dados de agosto de 2024”, registra o VALOR.
Ainda mais alarmante é a constatação de que, apenas em agosto deste ano, 5 milhões de beneficiários do programa Bolsa Família gastaram cerca R$ 3 bilhões em apostas, com média de gastos por pessoa de R$ 100. Considerando que o levantamento do Banco Central apenas considera os pagamentos via Pix, é possível que os números estejam subestimados.
Os dados jogam luzes sobre o impacto da regulamentação do setor e o potencial arrecadatório. Segundo as alterações promovidas pela Lei nº 14.790/2023, os apostadores deverão pagar IRPF sobre o ganho líquido anual com as apostas, à alíquota de 15%, e o produto da arrecadação das casas respectivas será destinado (i) ao pagamento do prêmio; e (ii) ao pagamento do imposto de renda incidente sobre a premiação. Realizada a dedução de tais valores, 88% serão destinados à cobertura das despesas de custeio e manutenção do agente operador e 12% serão recolhidos pelo agente com destino a fins diversos: educação, turismo, segurança pública, Comitê Olímpico Brasileiro, entre outros.
Especificamente no que se refere às apostas de quota fixa, a Lei nº 14.790/2023 alterou a Lei nº 13.756/2018 para instituir uma taxa decorrente do exercício de poder de polícia realizado sobre os agentes operadores das apostas. Nos termos da novel redação do artigo 32 da Lei nº 13.756/2018, a taxa incidirá mensalmente “sobre o produto da arrecadação”, após a dedução dos valores relativos ao prêmio pago e ao imposto de renda incidente sobre ele. Segundo o parágrafo 1º do mesmo dispositivo, a taxa será aplicada conforme as faixas estabelecidas no anexo da norma e destinada “à cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente operador da loteria de apostas de quota fixa”.
Desde logo, nota-se certa inconsistência na redação do dispositivo. Sendo as taxas tributos que visam custear a autuação pública da qual decorrem, a incidência sobre o produto da arrecadação do agente operador de apostas não parece possuir guarida constitucional. Como se sabe, o artigo 145, parágrafo 2º da Constituição veda a criação de taxas com base de cálculo própria de imposto. Sobre o tema, não se desconhece o teor da Súmula Vinculante nº 29, do Supremo Tribunal Federal, que autoriza o uso, para a aferição da base de cálculo das taxas, de “um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto”, sendo vedada, contudo, a “integral identidade entre uma base e outra”. No presente caso, é exatamente essa identidade que parece haver.
Não fosse por isso, há ainda outro elemento que coloca em dúvida a validade dessa taxa. O anexo da Lei nº 13.756/2018, na redação conferida pela Lei nº 14.790/2023, traz uma tabela com os montantes a serem recolhidos mensalmente, a título da taxa de fiscalização, sendo tais montantes diferentes (e progressivos) a partir de faixas de valores de arrecadação pelo agente. Ou seja, quanto mais apostas, maior o valor da taxa: a faixa mais baixa (cerca de R$ 31 milhões) resulta na taxa de R$ 54.419,56 e a mais alta (acima de, aproximadamente, R$ 661 milhões) na taxa mensal de quase R$ 2 milhões.
Seria possível defender que a correlação direta entre o montante arrecadado e o valor da taxa se justificaria em razão do maior montante de operações a serem fiscalizadas. Ainda assim, questões jurídicas persistem: em primeiro lugar, a enunciação clara de que a base de cálculo da taxa será o valor arrecadado pelo agente, deduzidos o prêmio e o imposto de renda respectivo, em clara ofensa constitucional; em segundo lugar o fato de que os valores eleitos para fazer frente à fiscalização revelam nítida finalidade arrecadatória. Sobre esse último ponto, inclusive, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é clara: “viola o princípio da capacidade contributiva na dimensão custo/benefício […] taxa que exceda flagrante e desproporcionalmente os custos da atividade estatal de fiscalização” (ADI 7400 e ADI 5374).
É evidente que as atividades de apostas precisam ser adequadamente tributadas, considerando-se tanto a capacidade contributiva envolvida quanto os potenciais danos que o acesso ilimitado pode causar aos indivíduos em específico e à saúde pública no geral. Contudo, há de se valer da espécie tributária adequada para tanto. A reforma tributária pode ser uma oportunidade para debater o tema, à luz da previsão, no Projeto de Lei Complementar nº 68/2024, da possibilidade de tributação, via imposto seletivo, dos concursos de prognósticos. A tributação pelo imposto seletivo, que irá se somar ao IBS e à CBS, poderá ser fonte relevante de arrecadação e instrumento que se une a outras medidas regulatórias tomadas recentemente pelo governo geral para disciplinar o setor.