A inconstitucionalidade da cobrança da taxa de fiscalização sobre apostas
O Governo Federal antecipou o prazo para a regulamentação da atividade comercial de apostas. O pacote com as novas regras foi aprovado em dezembro de 2023 e entraria em vigor apenas em janeiro de 2025. No entanto, com as recentes denúncias envolvendo as plataformas de apostas, o Ministério da Fazenda publicou, no dia 17 de setembro, uma portaria determinando a antecipação da vigência da Lei 14.790/23 para o início de outubro.
A partir de 1º de outubro as apostas passam a ser tributadas em duas frentes: a primeira prevê a incidência de 15% de Imposto de Renda sobre Pessoas Físicas (IRPF) sobre os ganhos líquidos anuais dos apostadores, na modalidade de apostas de quota fixa. A lei conceitua a base “ganho líquido” como “o resultado positivo auferido nas apostas de quota fixa realizadas a cada ano, após a dedução das perdas incorridas com apostas da mesma natureza” e isenta o imposto na primeira faixa da tabela progressiva anual do IRPF.
A segunda frente traz a tributação das plataformas de apostas, cuja base de incidência do imposto é formada pelo total dos rendimentos proveniente das apostas, deduzidos: (i) o pagamento do prêmio destinado aos apostadores e (ii) o pagamento do imposto de renda (15%) sobre a premiação. Após ambas deduções, 12% da base será repassada aos entes públicos e destinada à educação, segurança pública, esportes, saúde, seguridade social, turismo, serviços sociais e outras áreas; e 88% será destinado ao custeio e manutenção dos operadores das plataformas de apostas.
Feitas as deduções, incidirá sobre o lucro remanescente a taxa de fiscalização, destinada ao financiamento do poder de polícia sobre a fiscalização das atividades de apostas. A taxa, criada pelo texto da Lei 14.790/23, será “devida pela exploração comercial da loteria de apostas de quota fixa”, e o valor a ser pago está previsto na tabela do Anexo II da lei.
As taxas são espécies tributárias reservadas ao custeio do poder de polícia e de serviços públicos prestados aos contribuintes. Conforme disposto no texto constitucional, é vedada a identificação da base de cálculo entre taxas e impostos. Importante destacar que a Súmula Vinculante nº 29 do STF autoriza a correspondência de alguns elementos das bases, porém, não a sua integralidade.
A despeito da vedação constitucional, no caso prático da tributação das apostas, a nova taxa de fiscalização utiliza o lucro líquido como base de cálculo, que corresponde à mesma base já tributada pelo Imposto de Renda em sua regra geral. Além disso, o anexo da Lei 14.790/23 traz uma tabela que estabelece faixas com valores fixos, distintos e progressivos em função do lucro mensal das operadoras de apostas.
A determinação do valor em tabela progressiva pressupõe a violação da regra constitucional de destinação ao custeio de serviço específico e indivisível. Ou seja, a instituição da taxa é fundamentada no custeio de serviços públicos prestados ou colocados à disposição do contribuinte, que, no caso em questão, trata do serviço de fiscalização das apostas.
Todavia, a identificação da base entre taxa e imposto, e a determinação do valor em tabela progressiva, afastam a finalidade de custeio da taxa e denunciam sua finalidade arrecadatória. Portanto, deflagra-se a inconstitucionalidade em razão da composição da base e da inconformidade com a natureza da espécie tributária das taxas.
É oportuno frisar que a regulamentação e, consequentemente, a tributação das apostas é um tema urgente e de relevância social. Contudo, as regras de tributação da atividade devem utilizar as espécies tributárias adequadas para tanto, e atender às respetivas normas constitucionais.
Uma alternativa apresentada ao Senado Federal incorpora a tributação das apostas ao texto da Reforma Tributária, propondo a incidência do Imposto Seletivo sobre a atividade. A casa ainda irá analisar e deliberar sobre a proposta.
O ministro Luiz Fux convocou uma audiência pública que acontecerá em 11 de novembro deste ano, para discutir a lei que regulamenta as apostas esportivas online. A reunião estará pautada nas alegações da ação apresentada pela CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) à Suprema Corte, que questionam a Lei n.º 14.790. Foram convidados os presidentes da Câmara e do Senado, o ministro da Fazenda, entidades da sociedade civil e outras autoridades.
(*) Renata Elaine Ricetti Marques é pós-doutora em Direito Tributário pela USP e Ilmara Oliveira é mestre em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília. (Fotos: Arquivo pessoal) O artigo foi veiculado no Estadão.