A territorialidade dos jogos com apostas no Brasil

BNL I 04.07.24

Por: Magno José

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Bráulio do Carmo Vieira de Melo*

Recentemente, noticiado em diversos veículos de imprensa especializados e até mesmo em grandes veículos de mídia tradicional, ocorreu o envio do ofício de nº 18400/2024/MF da recém criada Secretaria de Prêmios e Apostas à Loterj que, em apertada síntese, alerta à mencionada autarquia sobre os limites da territorialidade de atuação das outorgas estaduais de loteria de quota fixa, senão vejamos a passagem do citado ofício:

“(…) Cumpre destacar que a redação original do Edital de Credenciamento no 01/2023 exigia que as empresas interessadas em participar do certame possuíssem sistema de geolocalização que garantisse a efetivação das apostas em tempo real (on-line) somente no território do Estado do Rio de Janeiro, além da apresentação de processos definidos que impedissem operações de apostas fora dos limites territoriais dessa unidade federativa, mediante bloqueio de acesso. Com as alterações, tais exigências deixaram de existir, acrescentando-se a previsão de que “a efetivação das apostas on-line será sempre considerada realizada no território do Estado do Rio de Janeiro, para todos os efeitos e finalidades, inclusive fiscais e legais, independentemente da geolocalização do IP ou do dispositivo de origem da aposta”, o que viola o princípio da territorialidade da exploração lotérica, previsto no § 1º do art. 2º do Decreto-lei no 6.259, de 10 de fevereiro de 1944, a saber:

Art. 2º Os Governos da União e dos Estados poderão atribuir a exploração do serviço de loteria a concessionários de comprovada idoneidade moral e financeira.
§1º A loteria federal terá livre circulação em todo o território do país, enquanto que as loterias estaduais ficarão adstritas aos limites do Estado respectivo. (destacamos) (…)”

Pois bem, como já mencionado em artigo anterior de autoria do signatário, temos hoje, em tese, um novo conceito de jogos com apostas no Brasil determinado pela Lei 14970/2023, derrogando o art. 50 LCP no conceito de jogos de azar, incluindo os jogos de habilidade, tais como poker, gamão, bridge e go, desde que haja apostas envolvidas, distinto também do inicial de loteria de quota fixa, repise-se, que de conceito lotérico não possui nenhuma semelhança, haja vista se tratar de um extenso rol de jogos bancados, que em nada se equipara ao conceito de loteria debatido nas decisão do STF que “autorizou” entes federativos explorar essa nova atividade econômica.

Nesse diapasão, para que haja uma didática mais clara para o leitor, importante trazer o trecho do voto vencedor do Ministro Gilmar Mendes sobre o conceito de atividade lotérica no Brasil, qual seja:

“(…) Transladando esse parâmetro para a discussão enfrentada nessas ações de controle abstrato é que a doutrina enquadra as loterias como típicas atividades de serviço público. Desde 1932, como visto, o legislador não hesita em atribuir um regime jurídico de Direito Público a essas atividades. A previsão consta ainda expressamente do Decreto-Lei 6.259/44 e do próprio Decreto-Lei 204/67, que é discutido nestas ações de controle abstrato.

Por esse motivo, parece-nos, no todo, acertada a afirmação do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, em artigo doutrinário, ao confirmar que “no que se refere à natureza jurídica da atividade lotérica, legem habemus”. De acordo com Sua Excelência: “É possível afirmar, assim, em linha de coerência com a posição doutrinária prevalente, que no Brasil a atividade de exploração de loterias é qualificada desde muito tempo, e até o presente, como serviço público” (BARROSO, Luís Roberto. op. Cit., p. 264).

Um corolário do enquadramento da exploração lotérica enquanto serviço público é a possibilidade de o legislador autorizar a prestação deste serviço público na modalidade indireta, por meio de concessão ou permissão. Isso porque a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como cláusula genérica, no art. 175, que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos“(…)”.

Assim, resta cristalina a natureza jurídica de serviço público da atividade lotérica no país, no entanto a nova legislação de loterias de quota fixa mistura os conceitos de loteria e jogos de azar, criando uma nova definição de jogos com apostas, como já afirmado, restando patente, em outra vertente, que a legislação citada no voto do ministro Gilmar Mendes considera o antigo conceito de atividade lotérica em que só havia emissão de bilhetes físicos sem qualquer atuação virtual, no qual a delimitação da atuação territorial de cada concessão ou permissão, ainda que indireta, seria facilmente identificável e fiscalizável.

Ademais, há de se consignar que, ao nosso sentir, a suposta “brecha legal” prevista no art. 2º da LCP, no qual os sites estrangeiros estariam se valendo para a não aplicabilidade das lei penal, possui juridicidade questionável, posto que os métodos de pagamentos podem estar funcionando como verdadeiros braços financeiros da atividade contravencional no país, atraindo, por conseguinte, a possível aplicação da lei penal contravencional, não de jogo de azar prevista no art. 50 da LCP (em tese derrogado), mas de atividade lotérica sem outorga prevista no art. 51 da LCP, ou seja, tendo como norte a teoria do domínio final do fato, os métodos de pagamentos utilizados, tanto para enviar recursos, como para o pagamento de prêmios aos apostadores no território nacional, quando descumprem a legislação cambial, podem ser “longa manus” dos diversos domínios de sites de jogos com apostas hospedados no exterior quando não recolham, por obrigação tributária, toda da carga de tributo nacional, principalmente o IRPF dos apostadores, aliado ao fato desrespeitarem as diversas normas consumeristas do país.

De outro giro, retomando o debate sobre a territorialidade interna, há de se refletir que, ainda que haja a possibilidade de outorga de loterias aos entes federados diversos da união, incluindo os municípios, muitos questionamentos surgirão, dentre eles destacam-se os seguintes: haveria alguma forma técnica de se limitar a atuação da outorga ao território do ente federativo de forma efetiva? Qual o alcance da decisão do supremo, haja vista o novo conceito de atividade lotérica, que hoje são jogos com apostas no Brasil? A competitividade da outorga da União seria afetada ao ponto de inviabilização econômica? Existem outras alternativas para a regulamentação efetiva, sem a atuação da Suprema Corte do país?

Ao responder o primeiro questionamento feito anteriormente, necessário trazer uma atividade empírica que ocorre atualmente em um ente federativo no qual ocorreu uma regular outorga a determinada empresa. O apostador ao entrar no domínio nacional da citada empresa “recebe” uma janela de “pop up”, na qual deve preencher diversos questionamentos, em especial se está fisicamente no Estado da outorga, além de sua qualificação e demais dados pessoais. Talvez a resposta ao questionamento inicial é desmembrada em outros questionamentos, que só o tempo e os reguladores poderão responder, quais sejam: será que essa empresa terá a viabilidade econômica para sua atuação diante das diversas outras que não precisam fazer qualquer questionamento inicial e exigindo diversos dados do apostador? E o método de pagamento que opera para a empresa com outorga e opera para diversas outras hospedadas no exterior estão de fato interessadas na regulação efetiva do segmento de jogos com apostas no país? A empresa com outorga nacional conseguirá concorrer com a empresa hospedada no exterior, que não paga tributo, não emprega formalmente no país, quiçá respeita todo o arcabouço legal e legislativo determinado ao segmento?

A título de exemplo, nessa toada, existe outra empresa com outorga estadual, em ente distinto do primeiro, que opera em domínio internacional (.com), exibindo nesse domínio a logo da autarquia, contudo explorando todo tipo de jogo de azar ou “loteria de quota fixa”, caso se entenda que haja um novo conceito de jogos com apostas, no entanto se valendo dos mesmos métodos de pagamento da outorga estadual. Questiona-se novamente: será que o apostador vai se valer de qual domínio para apostar, principalmente que essa empresa com domínio fora do país não recolhe os impostos devidos e não terá um controle estatal das apostas?

Ora, se uma outorga estadual, em regra mais barata, terá grande dificuldade para operar no mercado repleto de outros operadores que atuam em todo território nacional e hospedados fora do país, que não recolhem tributos, desconhecem a existência de normas consumeristas, todavia operam com os mesmos métodos de pagamentos das empresas com outorgas, por óbvio a outorga da União para apostas poderá ter a sua viabilidade econômica questionada por quem operar de forma lícita no segmento.

No que tange à territorialidade de atuação das outorgas estaduais, apesar de não haver nenhum “recurso” viável à decisão do supremo sobre a recepção das normas lotéricas, que viabilizaram a criação de novas atividades lotéricas estaduais, acreditamos que, em breve, o Supremo será novamente acionado para que delimite e esclareça a abrangência da territorialidade de cada outorga estadual, bem como diversas outros questionamentos que devem surgir diante do cenário de grandes incertezas e dificuldades regulatórias.

Por fim, sobre a territorialidade, a viabilidade econômica das atividades lotéricas de quota fixa no país, sobre a necessidade de um órgão regulador efetivo (agência reguladora), sobre a imensidão de recursos rotineiramente movimentados sem o devido rigor cambial e sobre os diversos delitos, em tese, perpetrados atualmente no território nacional por métodos de pagamentos e sites de apostas em domínios internacionais, muitos criados por brasileiros especificamente para atuarem somente no país,  muito esclarecedor e pertinente, em consonância ao presente texto e ao anterior do signatário, o envio do ofício SEI 150013/000422/2024 pelo presidente da Loterj, Sr. Hazenclever Lopes Cançado, ao Superintendente da Receita Federal no Brasil, no dia 24 de maio do corrente ano, noticiando o que se segue:

A operação desses sites e aplicativos ilegais não só viola diretamente as legislações federais de regência – Decreto-Lei Federal no 6.259/1944, Lei Federal no 13.756/2018, artigos 14, § 1º, e 29, Lei Federal no 14.790/2023 e Lei Federal no 13.873/2019 –, como também contraria o Decreto estadual no 48.806/2023, representando um canal para a prática de crimes contra as relações de consumo e financeiros, incluindo a lavagem de ativos e a sonegação fiscal, as quais podem estar sendo mascaradas pelos referidos Meios de Pagamento, que trabalham sem o rigor e transparência devidos.

O expressivo volume de recursos envolvidos neste setor não passa por qualquer fiscalização ou mesmo transparência, os crimes contra ordem tributária, conhecidos como crimes financeiros (lavagem de ativos, evasão de divisas, sonegação fiscal) por estar camuflados nessas operações.

O poder econômico e a ascensão desses Meios de Pagamento estão em escala tão veloz que já são notoriamente expostos como empresas proeminentes do mercado financeiro almejando divulgações de impacto internacional, estruturando operações globais e em evidente expansão[10].

Estimativas dão conta que o Estado do Rio de Janeiro, culturalmente o Estado mais adepto a apostas, concentra entre 20 e 30% do marketshare das Loterias Caixa. Partindo desta premissa, cerca de R$ 30 a R$ 45 bilhões são movimentados apenas no Estado do Rio de Janeiro, repisa-se sem nenhuma cobrança de tributos.

Tomando como segunda premissa, a opção do regime tributário das Casas de Apostas ser em lucro real, devem ser recolhidos IRPJ(15%), CSLL(9%), COFINS(7,6%), PIS(1,65%), os quais somados totalizam 33,25%, receita que está deixando de ser recolhida aos cofres federais (independente de outorga da LOTERJ ou do Ministério da Fazenda). E ainda, há que se considerandar a ausência de outros recolhimentos incidentes sobre a folha salarial, tais como: FGTS (8%), INSS (20%), RAT (1% a 3%), ISS (2% a 5%).

Veja-se que a parcela que cabe ao Estado não é imposto/taxa, são as outorgas, cujos valores: outorga fixa de R$ 5 milhões no ato do credenciamento na LOTERJ e outorga variável de 5% do GGR ( Apostas – Prêmios).

O Estado do Rio de Janeiro é a segunda maior economia do Brasil, com uma participação no PIB nacional de 9,9%, no ano de 2020, de acordo com um estudo do IBGE, em parceria com os Órgãos Estaduais de Estatística, Secretarias Estaduais de Governo e Superintendência da Zona Franca de Manaus – Suframa

Essa grande quantidade de pessoas expostas a uma atividade que movimenta volume de recursos vultosos sem que se tenha qualquer controle, fiscalização ou ao menos recolhimento de impostos e tributos traz demasiado risco à integridade de toda a coletividade e danos irreparáveis aos cofres públicos.

É incontestável que a atividade de jogo ilegal, que atualmente opera em todo o Brasil, em ambiente virtual sem qualquer controle ou restrição, movimentando centenas de bilhões de reais, representa um desafio significativo para as autoridades fiscais e regulatórias do país. A ausência de recolhimento de tributos provenientes dessas atividades ilegais não apenas prejudica a arrecadação estatal, como também compromete a integridade do mercado de jogos e apostas, colocando em risco a segurança dos consumidores e a ordem econômica.

Nesse sentido, a LOTERJ intermedeia junto a demais órgãos ações coordenadas para coibir as práticas ilegais perpetradas pelas citadas empresas. Encaminhamos ofícios ao PROCON (Anexo I), Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (Anexo II) e ao BANCO CENTRAL DO BRASIL-BACEN (Anexo III) para adoção de medidas práticas que impactem diretamente a exploração do serviço público lotérico, todavia, ainda sem resultados efetivos.

Veja-se que a inércia da regulamentação no âmbito da União favorece as empresas que continuam faturando cifras bilionárias sem deixar sequer um centavo de impostos/tributos no Brasil. Frisa-se que o Estado do Rio de Janeiro regulamentou a exploração, entretanto com a margem permitida pela União, que flagrantemente renuncia as receitas advindas dessa exploração do serviço público lotérico, sendo que as empresas continuam operando sem se credenciar no Estado.

Repisa-se, mais um vez que, os tributos acima mencionados, são devidos à União, não ao Estado, posto que aufere outra natureza de receita (5% do GGR) e, enquanto a União abre mão desta receita as empresas não veem motivos para recolher seus tributos em operação regular no Estado do Rio de Janeiro, gerando evidente concorrência desleal para com as empresas que optam por trabalhar à luz do poder público e se credenciam na LOTERJ.

Diante de todo o exposto, vimos por meio deste, com fundamento no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972, Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996 e demais legislações correlatas, denunciar à Receita Federal do Brasil a renúncia de receita da União bem como o cometimento dos crimes financeiros praticado pelas Casas de Apostas, Meios de Pagamento, Divulgadores, Agências de Publicidades, Empresas de aplicação e aplicativo web e todos os que viabilizam a operação, para autuação dessas empresas mediante investigação e apuração dos valores devidos aos cofres públicos oriundos da exploração do serviço público lotérico por Casas de Apostas que atuam irregularmente no Estado do Rio de Janeiro bem como Meios de Pagamento que prestam os serviços financeiros para as citadas empresas e camuflam suas operações de evasão de divisas, lavagem de ativos, sonegação fiscal entre outros.

A Receita Federal do Brasil é imprescindível para combater o jogo ilegal e os crimes financeiros perpetrados por esse ecossistema de apostas online irregulares que devasta os cofres públicos e assola a população do Estado do Rio de Janeiro e do Brasil!

Desta forma, parafraseando Charles Bukowski, quando menciona que “o problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certeza”, o momento regulatório do mercado de apostas é sem sombra de dúvidas uma grande interrogação, salvo para alguns operadores do direito que nunca se debruçaram de fato sobre o tema.

(*) Bráulio do Carmo Vieira de Melo é Delegado de Polícia Federal da classe especial cedido à Câmara dos Deputados, mestrando em Processo Legislativo Profissional pelo CEFOR, com MBA em Gestão e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas, com especialização em Compliance Anticorrupção e Compliance Concorrencial pela Escola Nacional de Administração Pública e especialista em combate aos crimes cibernéticos com cursos no USSS (United States Secret Service) e FBI (Federal Bureau Investigation).

 

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