
É notório o expressivo aumento do setor de apostas esportivas no Brasil. Trata-se de um mercado dominante no ramo de patrocínios no futebol brasileiro, sendo comum, ainda, a visualização de propagandas de sites de apostas esportivas na televisão e na internet. Não é por acaso que esse setor prevê um faturamento de R$ 12 bilhões no país em 2023, o que significa um aumento de 71% em relação aos R$ 7 bilhões faturados em 2020[1].
Essa previsão já conta com a esperada regulamentação no setor, pela qual pressupõe-se que as regras específicas possam facilitar o crescimento das apostas. De certa forma, o próprio setor vê de forma positiva[2] a taxação que virá com a necessária regulamentação da atividade, prevista pelo Ministério da Fazenda nesse ano.
Sendo assim, cumpre compreender quais as normas que envolvem a matéria, para entender como essa ausência de regulamentação em um setor tão importante atualmente pode produzir graves consequências, em especial para o direito penal, no que tange à prática de crimes por esse meio que já movimenta altas quantias sem a regulamentação.
As normas que regulamentam o setor
Inicialmente, sabe-se que os jogos de azar são proibidos e criminalizados desde o Decreto-Lei 9.215/1946, o qual proíbe a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território brasileiro, restaurando a vigência do art. 50 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941)[3].
Todavia, a lei que proíbe os jogos de azar é atualmente um tanto quanto obsoleta por se basear em elementos como “imperativo da consciência universal”, “abusos nocivos à moral e aos bons costumes”, que “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar”, entre outros[4]. Ora, conforme destacamos, o setor de apostas tem crescido a cada ano, o que parece indicar que a tradição moral não é mais contrária a essa atividade.
Dessarte, a descriminalização e a regulamentação das atividades de azar integram o escopo do PL 442/1991[5], em trâmite há mais de 30 anos e aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022, assim como o do Recurso Extraordinário 966.177/RS, com repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal, que discute a recepção do art. 50 da Lei das Contravenções Penais pela Constituição Federal de 1988[6].
Ademais, a proibição dos jogos já foi mitigada pela Lei 13.756/2018, que autoriza as apostas de quotas fixas, aquelas em que o apostador sabe, no momento de efetivação da aposta, quanto pode ganhar em caso de acerto do prognóstico, conforme dispõe seu art. 29. Essa norma, todavia, prevê que as apostas sob a modalidade lotérica são um serviço público exclusivo da União, mas por outro lado também estabelece que caberá ao Ministério da Fazenda regulamentar o disposto nesse artigo pelo prazo de até dois anos, prorrogável por igual período.
O grande problema da regulamentação da matéria é que, passados os quatro anos desse prazo máximo estabelecido pela lei, não houve qualquer ato normativo para tratar da atividade, restando um vácuo normativo que pode apresentar graves consequências, em especial para o direito penal.
Mas, como que tantas empresas de apostas esportivas atuam no país atualmente?
Essas empresas funcionam por meio de apostas na modalidade on-line, operando em sítios eletrônicos registrados fora do Brasil, e, assim, não estariam sujeitas às normas brasileiras e não praticariam o ilícito penal do art. 50 da Lei de Contravenções Penais. Cuida-se, portanto, de um meio atrativo para a prática delitiva.
Com efeito, os altos valores que envolvem o setor fazem com que ele seja, de certo modo, propício para lavagem de ativos, entre outros possíveis delitos, de forma que a ausência de regulamentação preocupa não só por uma possível insegurança jurídica dada a essa atividade, como também pela facilidade para a prática de ilícitos.
Ausência de regulamentação e prática de ilícitos
A lavagem de ativos é o ato ou sequência de atos destinados a reciclar ativos de procedência delitiva. Conforme estabelecido no art. 1º da Lei 9.613/1998, o tipo penal se consuma com a prática do ato de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal[7].
A despeito da clássica tripartição das etapas de lavagem realizada pelo GAFI, consistente na ocultação, dissimulação e integração de ativos à economia, o delito se consuma com a consecução de qualquer uma dessas fases, sendo que o propósito final do agente delito é a integração do capital à economia lícita[8], dando uma aparência de licitude a valores de origem criminosa.
Desse modo, no mercado de apostas esportivas não regulamentadas, diversas são as formas pelas quais a lavagem pode ocorrer, impulsionados pela ausência de regulamentação, que permite atividades como: (i) a criação de contas em sites de aposta para realizar depósitos de valores de origem ilícita e a transferência do prêmio para outra conta, conferindo aparência lícita às quantias obtidas; e, (ii) a realização de depósitos diversos em uma conta no site de aposta, sem participar de qualquer jogo, para em seguida encerrar a conta no site e devolver o valor para outra conta bancária, inclusive no nome de outra pessoa, conferindo caráter lícito aos valores.
A ausência de regulamentação permite que situações como essa ocorram, na medida em que não há normas que determinem, por exemplo: (i) os dados necessários para criar uma conta em um site de aposta – sendo possível, a priori, a realização de apostas de forma anônima; (ii) as contas para as quais pode ser transferido o valor do prêmio, como a determinação se é necessário estar atrelado ao mesmo CPF do apostador; e, (iii) como os valores depositados e não movimentados podem ser devolvidos à conta bancária do apostador ou se pode ser transferido a terceiros.
Para além disso, a ausência de regulamentação no setor permite esquemas mais complexos de lavagem de ativos como a criação de casas de apostas virtuais por organizações criminosas, por meio das quais poderão lavar grandes quantias com valores indo para o operador da aposta sediado em outro país, um offshore. Ou seja, pode-se tratar, inclusive, de um meio de evasão de divisas[9]. Nesse contexto, é possível que a casa de apostas, constituída por uma organização criminosa, realize contratos de prestação de serviços com empresas de fachada, dissimulando a origem ilícita dos valores e permitindo que essas quantias retornem aos falsos apostadores com aparência lícita.
Nota-se, assim, que há uma lacuna de regras em relação a essa atividade, tornando-se possível a prática de diversas condutas delitivas. Demais disso, como as empresas do setor hodiernamente atuam à margem da legislação, não há qualquer norma que imponha a elas os deveres de observar, fiscalizar e comunicar atividades suspeitas de lavagem ou de outros crimes e, do lado do Estado, também não há dever de fiscalização. Desse modo, as apostas esportivas ocorrem sem nenhuma inspeção, seja das autoridades públicas, seja dos operadores privados. Ademais, a constituição dos sites fora do território nacional dificulta a identificação dos apostadores, das atividades, e a consequente investigação pelas autoridades nacionais.
Em face disso, com a necessária e esperada regulamentação, espera-se que as empresas que operam nesse setor passem a observar os artigos 10 e 11 da Lei n. 9.613/98, que impõe os deveres de identificar os clientes, manter os registos de transação, adotar políticas de controle interno, atender requisições dos Órgãos públicos de controle, comunicar as operações que constituam indícios dos crimes de lavagem, entre outras.
Conclusão
A despeito da discussão existente sobre a descriminalização dos jogos de azar, fato é que, conforme verificado, abriu-se a possibilidade de realizar apostas de quota fixa por meio da Lei 13.756/2018. Nesse sentido, nota-se um aumento exponencial do mercado de apostas esportivas, o qual, não obstante, não está regulamentado devido a um vácuo normativo existente desde a promulgação da Lei 13.756/2018, que estabelecia o prazo máximo de quatro anos para que o Ministério da Fazenda regulamentasse a matéria.
Desse modo, a lacuna normativa gera preocupações pela insegurança jurídica que se instaura e, mais importante, pela possibilidade de prática de lavagem de ativos por esse meio, que se torna atrativo para organizações criminosas e criminosos. Assim, verificou-se algumas das formas pelas quais a atividade ilícita de escamoteamento de capitais pode ocorrer pelos sites de apostas, impulsionada pela ausência de regulamentação, como as apostas anônimas, as transferências para contas de terceiros, entre outros.
Em conclusão, urge a necessidade de regulamentar o setor, para que sejam impostas obrigações e deveres não só aos operadores de casas de apostas, como ao próprio Estado, de fiscalizar e controlar atividades possivelmente ilícitas que ocorram por esse meio.
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[1] https://www.lance.com.br/lancebiz/mercado-de-apostas-esportivas-mira-faturamento-bilionario-no-brasil-em-2023.html
[2] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp415qqj178o
[3] Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
[4] Todos previstos como “considerandos” do Decreto-Lei n. 9.215/1946
[5] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15460
[6] Trata-se do Tema 924 em discussão no STF, de Relatoria do Min. Luiz Fux: “Tipicidade das condutas de estabelecer e explorar jogos de azar em face da Constituição da República de 1988. Recepção do “caput” do art. 50 do Decreto-Lei n. 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais).”
[7] Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
[8] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 24.
[9] Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País. Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente – Lei n. 7.492/1986.
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(*) Felipe Fernandes de Carvalho é doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Penal pela mesma instituição. Sócio do Mudrovitsch Advogados e Cíntia Anacleto Isawa é mestranda em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada do Mudrovitsch Advogados. O artigo foi veiculado no Jota.Info.