Apostas online podem frustrar projeções de arrecadação da Fazenda
Muito tem sido discutido após a edição da Medida Provisória nº 1.182/2023, que regulamenta as apostas de quota fixa — apostas esportivas —, sobretudo em razão da expectativa de arrecadação pela União, que pretende se valer de tais recursos para equilibrar a balança financeira.
Segundo estimativas do Ministério da Fazenda veiculadas na mídia, o governo federal espera arrecadar até R$ 15 bilhões, embora admita que esses cálculos levem em consideração uma perspectiva conservadora. Apesar disso, pouco se fala sobre algumas condicionantes para a concretização desse volume de recursos e o fato de que a mencionada arrecadação se desenha até o momento apenas como mera expectativa.
Isso porque um tema que certamente gerará muito debate é a territorialidade das apostas realizadas de forma online por meio de sites e aplicativos de celular e os embates que se estabelecerão entre a União e os estados da federação quanto à exploração deste serviço público.
Quando do julgamento das ADPFs nº 492 e 493, em conjunto com a ADI nº 4.986/MT, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2020, que os estados-membros têm legitimidade para explorar o serviço público de loterias, desde que respeitados os limites da legislação federal sobre o tema. Desde então, os estados, encarando tal decisão como uma grande oportunidade de arrecadação, têm preparado o terreno para a exploração consistente deste serviço.
O entendimento adotado pelos ministros do STF naquela ocasião foi pautado justamente pela análise da repartição de competências, na forma como são expressas no texto da Constituição – entendeu-se que o pretenso monopólio da União na exploração do serviço público de loterias viola a competência material dos estados, no sentido de que estes entes da federação detêm uma “competência residual”, ou seja, a eles são reservadas as competências que não forem exclusivas da União ou dos municípios.
Acompanhando este movimento, a edição da MP nº 1.182/2023 se prestou a regulamentar a Lei nº 13.756/2018, que até então mantinha a modalidade de apostas de quota fixa em um limbo que não favorecia a nenhum dos agentes envolvidos — a empresa que disponibiliza tal modalidade, o apostador ou, ainda, a administração pública.
Atualmente tem sido veiculado que a União pretende licenciar todas as empresas que detenham os requisitos mínimos para operar as apostas esportivas, projetando, assim, uma arrecadação bilionária aos cofres públicos. No entanto, a questão não é tão simples, já que cada um dos estados e o Distrito Federal poderão explorar tal modalidade de forma concomitante em seu respectivo território.
Isso significa que a União poderá emitir autorizações para todas as empresas que se interessem em explorar as apostas esportivas, em todo o território brasileiro, cobrando, a título de outorga, determinada porcentagem das arrecadações do operador.
Não haveria nenhuma intercorrência para a União, não fosse o fato de que cada um dos estados poderá licenciar as empresas do mesmo segmento, para a exploração da mesma atividade, por um percentual mais baixo e, por conseguinte, mais atrativo ao parceiro privado, o que, por si só, alteraria a estimativa de arrecadação já projetada pelo governo federal.
Não fosse o bastante, em agosto de 2023 verificou-se o primeiro embate entre a Caixa Econômica Federal, que explora as loterias em âmbito federal, e a Loteria do Estado do Rio de Janeiro, autarquia criada na década de 1940 e em funcionamento desde então.
Esta autarquia publicou edital de chamamento público a fim de credenciar interessados em explorar este serviço, incluída a modalidade de apostas de quota fixa. Nada que não tenha sido feito por outros estados da federação, não fosse um detalhe: o entendimento particular da Loteria do Rio de Janeiro, no sentido de que as apostas online dependerão de mera declaração no ato da aposta, de que ela está sendo realizada no estado do Rio de Janeiro, sem a necessidade de se verificar a sua geolocalização naquele momento.
Isso significa que um apostador localizado em Roraima poderá efetuar apostas esportivas valendo-se da Loteria do Rio de Janeiro apenas selecionando esta opção e dando ciência de que tal aposta será considerada como realizada no território do Rio de Janeiro. Na prática, isso cria uma concorrência que mina quaisquer estimativas de receitas elaboradas pela União e pelos próprios estados-membros.
Para adicionar mais um ângulo nesta trama, alguns municípios (como Guarulhos e Belo Horizonte) têm ensaiado instituir suas próprias loterias — tema para outra análise, já que, a priori, eles não detêm competência para essa exploração —, situação que geraria ainda mais transtornos aos entes que, de fato, podem operar as loterias. Ainda que forçosa a interpretação dos municípios, o tema deve ser objeto de atenção imediata.
Não se olvida, no entanto, que este serviço público tem contornos sui generis e, dadas suas peculiaridades, discussões como estas tendem a atrasar ainda mais as vantagens que poderiam advir da sua implantação adequada. A União está considerando a concorrência com os próprios estados quando estima eventual receita? Quais os limites de exploração por cada estado?
Questões como essas deverão ser tratadas com atenção. Não há dúvidas de que a exploração dos serviços de loteria é uma oportunidade de ampliar a arrecadação sem impactos diretos nos contribuintes, mas há de se ter cuidado com algumas premissas ainda não discutidas.
(*) Anna Florença Anastasia é especialista em Direito Administrativo no GVM Advogados. O artigo foi veiculado na Revista Consultor Jurídico – CONJUR.