Clubes não podem impedir as casas de apostas de usar seus nomes

Apostas, Opinião I 04.05.23

Por: Magno José

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Clubes não podem impedir as casas de apostas de usar seus nomes
Rafael Marchetti Marcondes*

Diante da regulamentação das apostas esportivas no Brasil, muitos temas têm sido discutidos, tendo ganhado força recentemente a manifestação dos clubes de futebol indicando seu anseio em aumentar a fatia da arrecadação destinada às entidades desportivas brasileiras que optarem por ceder aos operadores os direitos de uso de suas denominações, marcas, emblemas, hinos, símbolos e similares.

Em termos práticos, de acordo com a redação original do artigo 30, parag. 1, III, da Lei 13.756/2018, em sendo do interesse das entidades desportivas licenciar seus símbolos, as casas de apostas esportivas regulamentadas pelo Governo do Brasil deverão pagar 1,63% sobre o resultado da arrecadação, descontado o valor dos prêmios pagos. Os clubes de futebol entendem que esse percentual é baixo, e pleiteiam sua majoração, sob o risco de vetar aos operadores não somente o direito de uso de símbolos, mas também de seus nomes.[1]

Antes de adentrarmos em questões técnicas que permeiam a discussão, é premissa básica entender como funcionam os sites de apostas no Brasil e no mundo. Salvo quando existe uma negociação específica do operador com uma entidade desportiva, os sites não se utilizam de qualquer símbolos ou imagens desses entes. Toda a operação se estrutura somente pautada no nome do clube e do jogador. Nada mais.

As entidades desportivas, em especial os clubes de futebol, têm ameaçado o Governo em vetar a utilização pelas casas de apostas não só o uso dos símbolos (que em regra não são explorados), mas inclusive dos nomes, amparados no artigo 87, da Lei 9.615/1998 – a Lei Pelé – que prevê que “a denominação e os símbolos de entidade de administração do desporto ou prática desportiva, bem como o nome ou apelido desportivo do atleta profissional, são de propriedade exclusiva dos mesmos, contando com a proteção legal, válida para todo o território nacional, por tempo indeterminado, sem necessidade de registro ou averbação no órgão competente“.

Essa discussão não é simples e não se resume à citada previsão legal. A lei ordinária evoca uma garantia aos clubes e atletas, isso é inegável. Mas no Direito, toda norma, para ser corretamente aplicada, deve ser analisada dentro de um contexto. O contexto a se considerar aqui é o seguinte. Uma plataforma de apostas consegue operar sem utilizar os símbolos oficiais dos clubes e das competições esportivas? A resposta é afirmativa. Sim, as apostas seguirão sendo viáveis, ainda que a experiência do consumidor seja parcialmente prejudicada. Ou seja, a prerrogativa dos clubes e atletas de exercer seu direito, não prejudica terceiro, apenas limita sua autonomia.

Por outro lado, se entidades desportivas e atletas impedirem o uso do seu nome pelas casas de apostas ainda é possível manter o funcionamento dos serviços de entretenimento fornecidos pelos operadores? A resposta é negativa. Sem a possibilidade de menção ao nome de um clube ou atleta, o serviço da casa de apostas não é prestado.

É simples entender o porquê. Sem os nomes, o consumidor não tem como navegar pela plataforma e apostar em um evento esportivo real. Imaginemos um jogo entre Cruzeiro e Grêmio. Como o apostador vai selecionar a hipotética vitória do clube gaúcho sobre o clube mineiro se o operador não puder anunciar a partida? Ou então indicar que o Cruzeiro conquistará 5 escanteios a seu favor ao longo da partida, se não for possível nomear a equipe? O mesmo funciona para os atletas, como apontar que determinado jogador levará um cartão amarelo na partida, se não for permitido indicar seu nome na plataforma? A impossibilidade de menção aos nomes de entidades desportivas e dos atletas inviabiliza a navegação pelo site e a orientação do apostador dentro dele, por consequência, impede o desenvolvimento das apostas esportivas. A prerrogativa dos clubes e atletas de exercer seu direito, vai além de restringir o direito de terceiro, simplesmente impede a consecução do direito ao trabalho e à livre iniciativa.

Como bem ponderou Fernando Vasconcelos[2], as casas de apostas esportivas não utilizam os nomes de clubes ou atletas para confundir o consumidor ou ainda para transmitir uma imagem de que são produtos oficiais do clube ou parceiro dos atletas:

“Nessa relação, há um notório interesse público do consumidor em ter informações básicas sobre clubes e atletas, desde quais são os confrontos daquela rodada até quais são os atletas que possuem uma expectativa de atuação naquele confronto.

Veja, portanto, que, diferente da exploração comercial indevida das propriedades dos clubes e atletas na venda de produtos não licenciados/piratas, as plataformas de apostas esportivas, e até mesmo outras plataformas, como os Fantasy Sports, não usam o nome ou símbolo de clubes e atletas para fins diretamente comerciais, mas tão somente como uma vinculação informativa necessária para oferecimento dos seus produtos para os consumidores. “

Por essa razão bastante elementar é que mundo afora, a utilização dos nomes pelas casas de apostas é permitida, entende-se que a referência tem finalidade informativa ao apostador. No Brasil, entretanto, os clubes de futebol se fundamentam no artigo 87 da Lei Pelé para tentar proibir o uso dos nomes, sem observar que, ao proibirem a exploração de tal direito, estão impedindo a realização de uma atividade empresarial.

Esse embate, em termos jurídicos, não se restringe ao disposto no artigo 87 da Lei 9.615/1998, ele remete a questões principiológicas, de envergadura substancialmente maiores. Estamos diante de um conflito de direitos fundamentais. De um lado, o direito das entidades desportivas e dos atletas fundado no artigo 5.º, X e V da Constituição Federal, que trata dos direitos personalíssimos, como a voz, a imagem, o nome, e a reprodução de habilidades e características que identifiquem a pessoa. Direitos que de acordo com o artigo 60, § 4º, IV, do texto constitucional foram alçados à condição de cláusulas pétreas, isto é, temas de tamanha relevância para a nação que não podem ser modificados, sequer por uma emenda constitucional.

Em lado oposto estão as casas de apostas, que defendem o direito de utilizar os nomes como forma de viabilizar sua atividade, ou seja, como forma preservar postos de trabalho e assegurar o cumprimento da livre iniciativa. Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa foram inseridos no texto constitucional nos artigos 1.º e 170, na condição de princípios fundamentais da República e da ordem econômica. O artigo 5.º, XIII, da Constituição Federal também reforça que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”.

Como bem expôs o Ministro Roberto Barroso[3], a “livre iniciativa não tem apenas uma dimensão econômica, tem uma dimensão de uma liberdade individual, de exercício dos direitos da personalidade. Ela transcende, portanto, o domínio puramente econômico, para significar as escolhas existenciais das pessoas, seja no plano profissional, seja no plano pessoal, seja no plano filantrópico”. Pelo seu viés de garantia individual, trata-se de cláusula pétrea, resguardada pelo artigo 60, § 4º, IV, do texto constitucional.[4]

Em suma, a tentativa de os clubes restringirem a utilização das suas denominações pelas casas de apostas cria um embate entre dois princípios fundamentais elevados à condição de cláusulas pétreas: direito da personalidade (clubes) vs. direito ao trabalho e à livre iniciativa (empresas de apostas).

Na Constituição Federal brasileira não há cláusula expressa como a que contém as constituições da Alemanha (art. 19, III, da Lei Fundamental) e de Portugal (art. 18, III, da Constituição Portuguesa), prevendo limites das restrições a direitos fundamentais. Apesar disso, o STF tem reconhecido a aplicação da ideia de um limite nos casos de colisão entre direitos fundamentais.

No HC 82.424[5], o Ministro Gilmar Mendes elegeu como critério solucionador de conflitos entre princípios fundamentais a aplicação do “princípio da proporcionalidade, também denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou ainda, princípio da proibição do excesso” por constituir “uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um limite do limite ou uma proibição de excesso na restrição de tais direitos“.

Trata-se da aplicação da máxima da proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy[6], segundo a qual o princípio da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. Isto é, a limitação de um direito fundamental deve respeitar um núcleo essencial desse direito. Como aponta Bernardo Gonçalves Fernandes[7]qualquer limitação (restrição) aos direitos fundamentais tem que respeitar o núcleo essencial destes, ou seja, o núcleo essencial que envolve diretamente os direitos fundamentais e por derivação a noção de dignidade da pessoa humana, que não pode ser abalada”.

Das lições extraídas dos julgados da Suprema Corte e da doutrina, se observa que não se pode permitir restrições impostas pelos clubes – por meio da vedação do uso do seu direito ao nome – das garantias fundamentais ao trabalho e à livre iniciativa, inerentes à dignidade humana, a tal ponto de as inviabilizá-las por completo. O direito ao trabalho e à livre iniciativa constituem pilares do Estado Democrático de Direito. Assim, ainda que se admita eventual restrição ao exercício desse direito, não pode a limitação simplesmente inviabilizá-lo, retirando-lhe um núcleo mínimo de significação.

A garantia dos clubes não pode afetar o núcleo essencial do direito ao trabalho e da livre iniciativa, privando os agentes econômicos do direito de trabalhar, empreender, inovar ou competir. E, portanto, a restrição desproporcional pretendida pelos clubes brasileiros contraria a Constituição Federal.

Mais do que isso, é entendimento do STF[8] de que na composição entre princípios e regras fundamentais, há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário, ainda que em detrimento do interesse particular. O direito ao trabalho e à livre iniciativa são expressões dessa prerrogativa.

As apostas esportivas, legalizadas sob o nome de loterias de quota fixa, nos termos do artigo 29, da Lei 13.756/2018, são serviços públicos. Em seus votos na ADPF 492 e 493, o Ministro Gilmar Mendes, se recorrendo às lições de Roberto Barroso concluiu que “parece-nos, no todo, acertada a afirmação do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO , em artigo doutrinário, ao confirmar que ‘no que se refere à natureza jurídica da atividade lotérica, legem habemus’. De acordo com Sua Excelência: ‘É possível afirmar, assim, em linha de coerência com a posição doutrinária prevalente, que no Brasil a atividade de exploração de loterias é qualificada desde muito tempo, e até o presente, como serviço público’ (BARROSO, Luís Roberto. op. Cit., p. 264).

Ou seja, tanto a legislação pátria quanto o Supremo, reconhecem a condição dos serviços relacionados às apostas esportivas, como sendo serviços públicos, isto é, de interesse da coletividade. Diante do embate entre interesses particulares dos clubes e interesses públicos dos operadores a solução ao conflito é dada de forma categórica pela Ministra Carmém Lúcia no MS 38180 AgR[9], ao afirmar que “não há interesses particulares oponíveis a razões de relevante interesse público“.

De tudo o que foi exposto, tem-se que se as casas de apostas optarem por explorar os símbolos da entidade desportiva conforme previsto na Lei 13.756/2018, devem remunerar tais entes pela utilização desse direito. O mesmo acontece caso optem por utilizar da fisionomia do atleta, em razão do disposto no artigo 87 da Lei Pelé. Entretanto, o simples uso pelos operadores do nome de clubes e atletas de modo a permitir a navegação dos apostadores pelo site ou aplicativo, assume função informativa e não pode ser restringido, ainda que sob o argumento de haver um direito fundamental, pois diante de um embate de cláusulas pétreas, o interesse público prevalece sobre o privado, além do que o princípio da proporcionalidade requer que aplicação de um direito não inviabilize o núcleo essencial do outro.

Vale aqui encerrar parodiando as palavras do Ministro Roberto Barroso nos julgamentos do RE 1.054.110 e da ADPF 449. A melhor forma de se lidar com inovações e disrupção criativa da velha ordem não é impedir o progresso, mas, sim, tentar produzir as vias conciliatórias possíveis. Do contrário, seria “como tentar aparar vento com as mãos”.

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[1] https://www.poder360.com.br/economia/clubes-ameacam-deixar-apostas-se-nao-houver-acordo-com-governo/

[2] https://leiemcampo.com.br/por-que-falar-em-marketing-de-emboscada-nao-faz-sentido-no-ascendente-mercado-de-apostas-esportivas-brasileiro/

[3] RE 1054110, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2019.

[4] Nesse sentido: ADI 3937 e ADPF 323.

[5] Publicado no DJ 19.03.2004.

[6] Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986.

[7] Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 348.

[8] ADI 1.950, rel. min. Eros Grau, julgado em 3.11.2005.

[9] Tribunal Pleno, julgado em 14.3.2022.

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(*) Rafael Marchetti Marcondes é professor de Direito Esportivo, de Entretenimento e Tributário. Doutor e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP. MBA em gestão esportiva pelo ISDE de Barcelona/ES. MBA em gestão de apostas esportivas pela Universidade de Ohio/EUA. Chief Legal Officer no Rei do Pitaco. Presidente da Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS). Diretor jurídico do Instituto Brasileiro pelo Jogo Responsável (IBJR). Diretor de Relações Governamentais da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte (ABRADIE). O artigo foi publicado na Lei em Campo.

 

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