COB e confederações podem ficar sem R$ 300 milhões das loterias

Destaque I 22.02.21

Por: Elaine Silva

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O Tribunal de Contas da União (TCU) entende que que o COB precisa, sim, cumprir a Lei Pelé (Imagem: Divulgação)
Um fantasma de dois anos atrás voltou a assustar o movimento olímpico brasileiro. O Ministério Público Federal (MPF) recomendou à Caixa Econômica Federal, conforme mostra documento publicado hoje (20) pelo site Metrópoles, que esta suspenda o repasse de recursos da Lei Agnelo/Piva, das loterias, para o Comitê Olímpico do Brasil (COB), que por sua vez é o responsável por repassar a verba às confederações olímpicas. Coisa de R$ 300 milhões por ano, sem os quais o esporte brasileiro ficaria asfixiado.
É esse dinheiro, que agora pode ter sua torneira fechada, que sustenta o movimento olímpico no Brasil, ainda que a preparação para os Jogos Olímpicos de Tóquio não corra riscos – o COB tem economias suficientes para manter as ações planejadas. Apesar da dívida de mais de R$ 200 milhões cobrada pela Receita Federal, que colocou o COB no polo passivo da dívida da antiga Confederação Brasileira de Vela e Motor (CBVM).
Para receber recursos das loterias, ou qualquer outra verba pública federal, as entidades esportivas precisam cumprir uma série de exigências impostas pela Lei Pelé, como limitação de mandatos de dirigentes, 1/3 de votos de atletas, transparência, e apresentar uma Certidão Negativa de Débito (CND). Sempre foi assim, até o dia 8 de abril de 2019.
Naquele dia, a Secretaria Especial do Esporte informou à Caixa que o COB não cumpria as exigências da Lei Pelé, por não ter CND (por causa da dívida da vela), e que por isso os repasses da Lei Piva deveriam ser suspensos. Isso causou burburinho e, como agora, a acusação de que a preparação olímpica ficaria em risco. No dia seguinte, depois de muita pressão, a Secretaria mudou radicalmente de ideia e passou a entender que o COB não precisa cumprir a Lei Pelé.
A partir daquele dia, a Secretaria acatou a tese, do jurídico do COB, de que esse repasse é discricionário, previsto em lei, e por isso não depende de o comitê cumprir a Lei Pelé. Isso também é uma mudança de postura da parte do COB, que em 2017 assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério do Esporte exatamente para se adequar à Lei Pelé e não perder o acesso a esse dinheiro — ou seja, concordava que precisava cumprir a Lei Pelé.
O Tribunal de Contas da União (TCU), porém, tem entendimento diferente da Secretaria. Entende que o COB precisa, sim, cumprir a Lei Pelé. O Olhar Olímpico mostrou isso em abril de 2019. Mas a opinião do TCU não vinha sendo levada em consideração, com Secretaria e Caixa fazendo um jogo de empurra-empurra. Nenhum dos dois queria, nem quer, ser responsável por deixar o esporte olímpico sem dinheiro no Brasil.
Recentemente, o MPF passou a se mexer exigindo que a Caixa faça sua parte. Documento publicado pelo Metrópoles mostra que, em 16 de dezembro, a procuradora da República Anna Carolina Resende Maia Garcia recomendou que a Caixa “suspenda de imediato e abstenha-se de efetuar o repasse das verbas oriundas dos prognósticos da loteria em favor do Comitê Olímpico do Brasil (COB) e demais entidades do Sistema Nacional do Desporto sem que haja a devida certificação e comprovação, nos termos da legislação, do pleno cumprimento dos artigos 18 e 18-A da Lei Pelé”.
De acordo com o Metrópoles, a Caixa consultou a Secretaria Especial do Esporte e agora aguarda um posicionamento. O momento, porém, dificulta que a secretaria, agora sob novo comando (estava na mão dos militares em 2019 e hoje tem Marcelo Magalhães como secretário), faça vistas grossas.
Acontece, paralelamente, uma segunda discussão sobre a Lei Piva, que é a certificação para confederações que reelegeram seus presidentes para terceiro, ou mais, mandato. A Advocacia Geral da União (AGU) entende que isso fere a Lei Pelé e, por isso, confederações nessa situação não podem ser certificadas. Sem certificado, perdem acesso ao dinheiro das loterias. Estão nessa situação o vôlei, a ginástica, o tênis de mesa e, futuramente, o levantamento de peso (o atual presidente é candidato único).
Na semana passada a Secretaria organizou um fórum online com comitês e confederações e disse, com todas as letras, que essas entidades ficarão sem certificado, doa a quem doer. Nas redes sociais do governo, isso foi justificado, com aspas para Magalhães, como “o certo é o certo, não vamos dar jeitinho para ninguém”. Por mais que a decisão seja péssima para o esporte, é o correto a se fazer.
Agora a Secretaria e a Caixa estão em situação semelhante, mas de impacto muito maior. No entendimento do MPF, do TCU, e no entendimento que historicamente prevaleceu no governo e no COB, o COB precisa ter os repasses suspensos enquanto estiver no polo passivo de uma dívida considerada impagável, de mais de 20 anos.
Entenda a dívida
A dívida desde o final da década de 1990, quando a entidade máxima da vela no Brasil era a CBVM. Por anos os principais velejadores olímpicos do país reclamaram da gestão de Walcles Figueiredo Osório, presidente entre 1991 e 2007, quando foi forçado a renunciar, diante de uma dívida de então R$ 100 milhões com a Receita. O débito é referente principalmente a impostos não pagos pelo Bingo Augusta, que funcionava em São Paulo sob a chancela da confederação.
Assim que Walcles renunciou, em janeiro de 2007, Lars Grael assumiu a presidência da CBVM, descobriu o tamanho da dívida e solicitou a intervenção do COB. O comitê contratou auditoria e controlou a confederação até novembro de 2012, quando um grupo liderado pelo então presidente da federação do Rio, Marco Aurélio de Sá Ribeiro, assumiu a entidade para solicitar sua desfiliação junto à federação internacional. Alguns dias antes nascera outra entidade, a CBVela, com outro CNPJ, também presidida por Marco Aurélio. Em 2013, COB e World Sailing reconheceram a CBVela como a entidade máxima da vela no Brasil.
As questões esportivas foram resolvidas, mas não as fiscais. Em abril de 2017, a dívida, acrescida de multas e juros, já superava R$ 191 milhões — atualmente ela supera R$ 200 milhões. Mas de quem é a responsabilidade sobre ela? Para a Receita, é da CBVela, do COB, das federações de São Paulo e do Rio e do ex-interventor Carlos Luiz Martins Pereira de Souza.
No maior dos processos, o desembargador Marcus Abraham rejeitou pedido do COB para ser excluído da lista. “É razoável reconhecer que o COB tenha se descurado de suas obrigações quando da gestão temporária da CBVM, permitindo sua extinção sem que fossem saneadas suas dívidas perante os credores, e ato contínuo, permitiu a criação de outra entidade com o mesmo objetivo”, escreveu ele, em sua decisão, repetida no julgamento da Terceira Turma Especializada do TRT2.
Para Abraham, houve tentativa de fraude no processo sucessório. “Tais fatos indicam a ocorrência de uma modalidade de fraude, pois, ao que parece, há indícios de formação de um grupo que pode ter agido com o intuito de afastar responsabilidades decorrentes de não recolhimentos de tributos, com evidentes prejuízos aos cofres públicos”, apontou.
Na decisão, o desembargador ressalta que a CBVela “somente foi criada em razão da inviabilidade econômica da CBVM”, de forma que houve, segundo ele, “alegada sucessão de uma pessoa jurídica pela outra (CBVM pela CBVela), para exploração da mesma atividade (em que pese, não lucrativa) então desenvolvida pela executada, com o aval da principal responsável pelo esporte olímpico no Brasil, que inclusive, à época era quem administrava a confederação devedora, como interventora”. (Coluna Olhar Olímpico do UOL – Demétrio Vecchioli)
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