CPI das apostas descortina mais uma história tipicamente brasileira
Instalada no último dia 17 de maio na Câmara Federal, a CPI das apostas esportivas deverá nas próximas semanas protagonizar o debate que se trava em variadas frentes para a modelação do negócio em condições de segurança e legalidade. Entre “pavoneios” e “boleiragens” de costume que certamente repetir-se-ão aos nossos olhos, irá atuar com a declarada intenção de investigar o mercado (viés penal) e encaminhar contribuições para a regulamentação (cunho propositivo).
O enredo é o de sempre, uma situação nova com a aparência de “terra de ninguém”, sem que alguém saiba efetivamente o que é certo ou errado, se tal coisa vale ou não, o quanto isso é ou não é legal… então vem um escândalo, uma operação (aqui a Penalidade Máxima), a intervenção do MP, a TV, as páginas policiais e uma CPI: não é que a história se repita, é que ela rima! E é invariavelmente marcada pelo carimbo brasileiro de inversão da ordem natural das coisas, da informalidade e oportunismo, da falta de rigor e imprecisão técnica, de destacada imperfeição.
Essa “nossa história” recente não conta muitos anos de vida e teve uma inflexão decisiva a partir da assinatura pelo ex-Chefe do Executivo na metade do ano de 2020 do Decreto que autorizou a inclusão das apostas de quota fixa no PPI – Programa de Parcerias de Investimento, no âmbito do PND – Plano Nacional de Desestatização, enquadramento ao qual deveria seguir a edição de legislação específica para regular propriamente o mercado, o que até agora não ocorreu. Assim, o fato é que o decreto inicial serviu como espécie de salvo conduto revestindo de “legitimidade” a atuação (em tese) do mercado, momento em os seus operadores imediatamente passaram a fomentar a atividade ainda desempenhada timidamente e a fizeram ganhar força e relevância consolidando o mercado em pouco menos de 3 anos. E, mesmo sem regulação (o mercado não sucumbe à letargia legislativa), o negócio se fez próspero e se traduziu muito além do volume de apostas propriamente dita, como no patrocínio de várias camisas de clubes, naming rights de torneios oficiais, coberturas esportivas, etc., com isso movimentando cifras de bilhões.
A estrutura, por incrível que possa parecer, é um arremedo, e envolve normalmente uma sede empresa offshore, uma operadora de pagamento local, as vezes uma sobreloja… direitos e contratos, em especial de patrocínio, do licenciamento da BetCo. para o Brasil, nada muito sofisticado. Se acaso eventual apostador lesado tiver que fazer valer um direito seu por exemplo, provavelmente terá dificuldade até mesmo para conseguir intimar “quem de direito”!
A natureza da aposta de quota fixa em nada se assemelha a qualquer tipo de loteria, ela não se aperfeiçoa através de um concurso de prognósticos e da premiação através da distribuição de um rateio. Aqui se trata de um contrato direto entre o apostador e a casa de apostas, é preciso que se pense em um cassino, com uma banca pagadora. Assim funcionam as casas de apostas.
O que se experimenta no momento atual brasileiro em relação ao mercado de apostas é uma situação onde vemos que, salvo os operadores com sua estratégia agressiva e aparentemente planejada quanto ao desenvolvimento do negócio, os demais agentes são atores que não sabem exatamente qual é o seu papel nem tampouco como desempenhá-lo, valendo-se então das oportunidades que lhes são franqueadas, tais como para os mendicantes clubes os contratos de patrocínio (a quase totalidade deles tem seu BET.com), cessão de naming rights por federações promotoras das competições para se financiar e divulgar, publicidade para os veículos de comunicação, renda extra para atletas que estrelem propagandas. O governo poderá até taxar, mas parece não ter pressa. Com tudo indo tão bem assim, para que complicar, discutir lei e tal…
Exageros à parte, a necessidade da regulamentação é manifesta: antes de mais nada, imperiosa a mitigação das ameaças, graves e identificáveis, que a atividade sujeita o meio social em que está inserida. Manipulação de resultados, a “bola da vez”, não é a única. Lavagem de dinheiro é outra preocupação, além do próprio distúrbio patológico derivado da compulsão, um pesadelo.
Aqui mesmo não tratando o chamado vício social, até pela falta de credenciais ou conhecimento para tanto, não se deixe sem registro pois representa uma chaga enorme nas pessoas e dentro das famílias, vinte anos atrás à época dos bingos e caça níqueis essa faceta foi escancarada e lá mostrou merecer tratamento adequado em questões relacionadas à segurança e saúde pública.
Quanto à lavagem de dinheiro, o ambiente desregulado torna-se propício à grande afluência de recursos por várias portas e sem comprovações, circunstância que igualmente tem demandado extrema preocupação das autoridades, não só as nacionais. É outro aspecto bastante vulnerável na experiência atual, seja porquanto aos valores ingressantes de forma pulverizada através das apostas, seja quanto ao lastro de origem dos pagamentos, tudo potencialmente muito nebuloso.
E por fim a manipulação. A crueldade desta é que corrompe os agentes diretos, corrói as instituições envolvidas, pode fulminar a própria credibilidade do negócio. Esse é o tema mais aderente à possibilidade de plena regulação com o estabelecimento de padrões e critérios, por exemplo a vedação de que todo e qualquer palpite dependa de ação individual, ou a definição das competições que possam ser exploradas, entre outras medidas diretas e de fácil aplicação.
É hora do legislador decididamente avocar a responsabilidade na edição deste marco regulatório em processo que conte com a participação de todas as partes interessadas, criando mecanismos para arrecadar e repartir, e também fiscalizar e punir. Por seu turno, os clubes e as federações igualmente devem desenhar o seu papel, seja em relação aos seus patrocinadores diretos, aos atletas que mantém ou as competições que promove, conforme é o caso e atuação de cada um.
Propaganda, patrocínio, interesses, transações, conflitos, há muito a ser disciplinado, é extensa a lição de casa. Não é só prever multa na cartilha dos atletas, é mais que isso: é inclusão no mapa de riscos, verificação por controles internos, reclassificação contínua do que pode e do que não pode. Estamos todos preparados? Aposto que não! Vejam que meses atrás a CBF com uma mão oficiou os afiliados para prestarem informações sobre os patrocínios, ao tempo em que com a outra cedia os direitos de uso do nome da maior competição do país; já os clubes estampam marcas bet.com nas camisas sem entender sua participação real além disso. Bem complicado!
Como há meses os cartolas não têm logrado superar as intermináveis discussões acerca das tentativas de demonstrar ao coirmão o seu “sagrado e divino direito de valer e receber mais do ele”, é certo que outras matérias não menos importantes que a(s) Liga(s), mas com potencial de contribuição direta aos fundamentos do novo mercado futebolístico brasileiro, nelas incluídas as apostas esportivas (junto do novo formato de transmissões, da SAF, da revisão do produto, da transição geracional, do e-sport, etc.) acabam ficando à margem dos debates e da própria ordem do dia. Porém a questão das apostas, circunstancialmente, voltará a ser priorizada.
Para situações na vida onde impera o açodamento, a deficiência na organização ou a inversão quanto à sequência lógica das coisas, o dito popular cunhou a expressão de “se colocar o carro na frente dos bois”, algo que sugere o ocorrido com as apostas onde nos deparamos com um mercado em franca atividade de forma empírica e sem efetivo alicerce legal, em verdade uma estrutura precária que agora reclama ajustes e definições para afastar os embustes e ameaças. Para ficar no carro, é hora de acionar os freios de arrumação e materializar a base normativa, as alterações nos regulamentos de competições, Estatutos e afins. Essa é a aposta certa agora!
(*) Savério Orlandi é advogado em SP, pós graduado em Direito Empresarial pela PUC-SP, onde também se graduou. Membro do CD e do COF da Sociedade Esportiva Palmeiras e da ABEX. O artigo foi publicado na Coluna Meio de Campo no Migalhas