Dinheiro, lobby e publicidade: como apostas esportivas dominaram o Brasil
O dia começa por volta das 4h30 para Carlos*, 23. Diante de três monitores, lê notícias sobre futebol de países que estão bem à frente do Brasil em termos de fuso horário. Com as informações, faz apostas esportivas online das 9h às 21h, e diz lucrar cerca de R$ 30 mil por mês. Apaixonado mais por números que por futebol, ele deixou de lado a faculdade de engenharia para se dedicar às “bets”. “[Mas] 99% perdem dinheiro com apostas, eu não sou a favor de estimular”, diz.
O estímulo, contudo, está por todo lado. Nas ruas, a sensação é de que existe uma “bet” em cada esquina. Na internet, coaches dão dicas de resultados prováveis — e, para milhões de seguidores, prometem o milagre da multiplicação de renda. Nos campos de futebol, infiltrou-se tanto que tornou réus, na terça-feira (9), 16 jogadores, financiadores e apostadores acusados de manipular resultados. O governo Lula (PT) divulgou uma proposta de MP para regulamentar as casas de apostas no Brasil.
Casas de apostas usaram todas as brechas para se consolidar no mercado, despejando dinheiro em canais de TV, redes sociais, sites, times, garotos-propaganda, embaixadores, youtubers e até banners de ônibus. Recentemente, uma casa patrocinou o BBB e a Farofa da Gkay.
‘País de perdedores’
Sites de apostas esportivas existem desde os primórdios da internet. Nos anos 2000, estavam no Orkut e fóruns online.
“Casas de apostas alimentam o mercado brasileiro há mais de dez anos”, afirma Rodrigo Alves, 40, conhecido como LocoBets, que começou a apostar na SportingBet em 2008. Eram empresas estrangeiras, mas que já tinham sites em português, atendimento ao público brasileiro e suporte para transferências bancárias para o Brasil.
Segundo representantes do setor, o país sempre esteve no radar devido a uma combinação de fatores: o tamanho da população, o apelo popular do futebol e a tradição da “fezinha”.
O trader esportivo Fábio Bampi, 41, conhecido como Nettuno, acrescenta outra variável: na análise dele, o Brasil seria um nicho vantajoso por ser um mercado “perdedor”, onde a maioria dos apostadores “não tem a mínima noção de educação financeira” e opera sem entender as “odds”, cometendo vários erros, mesmo com pouco dinheiro. “É lucro praticamente certo para as casas.”
O lobby das casas na Casa
Esse perfil é o alvo das campanhas de marketing. A Bodog foi a primeira patrocinadora master da Copa do Brasil, em 2018, quando começou a se discutir a legalização das apostas esportivas. Na época, anúncios de sites passaram a pingar em canais como Fox Sports e SporTV. Para driblar a lei, que proíbe publicidade de atividades ilícitas, anunciantes usavam sites com final “.net”, que funcionam como blogs sem apostas diretas.
Só no fim de 2018 as apostas online deixaram de ser contravenção penal, quando o Congresso acrescentou a uma medida provisória a modalidade “quota fixa”, em que o apostador sabe de antemão o quanto ganha, isto é, não seria jogo de azar imprevisível, como bingos ou caça-níqueis.
Além da articulação de políticos, como Otávio Leite (PSDB-RJ) e Bacelar Batista (Podemos-BA, à época, hoje no PV), a discussão teve lobby de empresas estrangeiras e representantes de clubes. No fim de 2018, o advogado Pedro Trengrouse fez memorando defendendo a legalização e, tempos depois, o jornal O Estado de S. Paulo revelou que ele negociou serviços de “relações públicas” para a Remote Gambling Association (que representa companhias europeias). Ao TAB, negou relação com a entidade.
O argumento pró-legalização era a arrecadação de tributos, e a expectativa era abrir caminho, no futuro, para a liberação de outros jogos, entre eles, cassinos. Após a diretriz passar no Congresso, o governo federal deu um prazo de dois anos, prorrogável por mais dois, para regulamentar o setor — o que não ocorreu durante o governo Bolsonaro (PL) por pressão da bancada evangélica.
Abrindo a porteira
Desde 2016, a fim de expandir o alcance, as maiores casas investiram nas propagandas de TV aberta, tentando levar publicidade de seus sites promocionais à líder de audiência, a Globo.
A princípio, o compliance barrou as investidas pois a atividade não estava legalizada. Depois da descriminalização, a partir de 2020, a Globo passou a veicular anúncios dessas empresas. “Aí abriram a porteira”, conta um ex-jornalista esportivo da emissora.
Em 2021, a Betfair foi patrocinadora do Cartola, app de “fantasy game” do grupo Globo. Em 2022, até o Jornal Nacional recebeu patrocínio master de diversas casas.
Casas cobriram multas milionárias para cancelar contratos de determinado time para ocupar o lugar do anunciante
Na Copa do Qatar, a Globo assinou um contrato com a Pixbet, casa cujo dono operava bancas de jogo de azar na Paraíba, exibindo a marca nas transmissões e comerciais (os valores não foram divulgados, mas, para se ter ideia, em 2018 operações similares custaram R$ 180 milhões).
A Pixbet fez uma peça especial para o horário nobre, narrada por Galvão Bueno, que também era garoto-propaganda e recebeu patrocínio para gravar um podcast. No comercial, o narrador cita vantagens como lances a partir de R$ 1 e saques via Pix, “tudo para te dar um motivo a mais para comemorar”.
O céu é o limite
O mercado cresceu tanto que hoje o futebol brasileiro basicamente depende dessas casas. Em 2022, quase todos os times da série A e B foram patrocinados por uma delas, com valores nunca antes vistos no mercado. “Começa em R$ 12 milhões, e o céu é o limite”, diz Fabio Wolff, 45, da Wolff Sports, agência de marketing esportivo que tem 20 casas entre seus clientes.
Os valores de contratos praticamente triplicaram, e as casas não precisam procurar tanto para selar parcerias: as mídias e os famosos vão atrás delas.
“Eles chegaram por todos os lados”, afirma um ex-jornalista do Lance!, site especializado na cobertura esportiva. Na última Copa, por exemplo, o veículo teve quatro anunciantes masters, três deles casas de apostas esportivas.
Ronaldo e Rivaldo para entrevista no Dia de Jogo, com Tiago Leifert
“Essa indústria precisa da publicidade”, diz José Vernucci, 61, assessor no Brasil da casa espanhola Codere, gigante do ramo que ainda não aceita apostas de brasileiros, mas acompanha os rumos da regulamentação no país. No exterior, a empresa opera cassinos. “Nós vamos para o mercado como se estivéssemos vendendo diversão. As pessoas apostam para se entreter, não para ficar ricas.”
Entre entretenimento e apostas, as casas miraram personalidades do futebol, como o jornalista Tiago Leifert. Ele, que já se declarava um apostador, foi convidado em 2022 para assumir a direção do “Dia de Jogo” da Betfair, iniciativa inédita para discussão de estatísticas num formato de programa jornalístico mais “descontraído”. Na estreia, entrevistou dois embaixadores da Betfair: os ex-jogadores Ronaldo e Rivaldo.
“As propagandas na mídia trazem todo tipo de gente para esse nicho complexo, e a maioria começa a operar como se fosse um cassino”, critica o trader esportivo Nettuno. Na avaliação dele, o mercado de apostas não é para todo mundo, mas a promessa de diversão atrai amadores que, sem conhecimento, perdem dinheiro para as casas: “É simplesmente atrair mais pessoas para um tipo de ‘armadilha'”.
A adrenalina de apostar
O paulista Bruno*, 34, já passou 17 horas no computador apostando, atividade que iniciou há seis anos. “Não me importava mais se estava ganhando ou perdendo, queria sentir a adrenalina.”
Antes de entrar nos Jogadores Anônimos, ele perdeu empregos, contraiu dívidas e terminou um casamento por causa do jogo compulsivo. Quando deu entrevista ao TAB, contava 361 dias sem apostar.
No Programa Ambulatorial do Transtorno do Jogo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, a demanda de atendimento aumenta se uma legislação dá mais liberdade ao jogo, como quando houve a liberação dos bingos, afirma o coordenador do programa, o psiquiatra Hermano Tavares, 55.
Ele diz que a digitalização de apostas trouxe um novo tipo de paciente ao ambulatório: homens mais jovens, de 32 a 35 anos. Até 2018, o perfil mais comum era de homens entre 46 e 47, praticantes de jogos como vídeo-pôquer ou vídeo-bingo.
“O perfil mais jovem tem uma inclinação para ‘sport betting’, ou para uma mistura disso com especulação financeira”, explica. Segundo Tavares, os mais propensos ao vício são pessoas mais vulneráveis: menos anos de estudo, menor poder aquisitivo, um histórico de privações e de problemas de saúde mental, como depressão.
Popular como o jogo do bicho
Quem tem dificuldades de acessar a internet muitas vezes recorre a lan houses para apostar. Bancas de jogo do bicho também abraçaram a atividade e oferecem apostas esportivas em maquininhas nos seus pontos de venda.
Uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro identificou que o bicheiro Rogério de Andrade havia criado o site de apostas Heads Bet, licenciado em Curaçao, paraíso fiscal do Caribe — ao TAB, a empresa negou qualquer envolvimento com o bicheiro. A operação está registrada sob a mesma licença da casa Vem Betar.
Lan houses e bancas de jogo do bicho no centro de São Paulo também estão fazendo apostas esportivas
O Ministério Público de São Paulo também investigou a empresa Betzord, do influencer da área Lucas Tylty, 24. “Amava futebol. Mas em 2013 descobri que era uma máquina de dinheiro e aos 22 anos fiquei rico apostando”, diz a bio dele no Instagram, onde exibe para mais de 2 milhões de seguidores viagens às Maldivas e a estádios de futebol na Europa. Procurado, Tylty não retornou o contato.
Questões nebulosas envolvendo as bets alcançaram agora jogadores profissionais. No mês passado, o Ministério Público de Goiás deflagrou operação contra manipulação de jogos até da Série A.
Apostadores podem apostar não só no placar final, mas em pênaltis e até cartões durante uma partida, o que abriu brecha para jogadores forjarem lances para garantir resultados esperados pelos articuladores do esquema criminoso. Na MP que está sendo discutida atualmente, e que será votada no Congresso, casas e atletas, dirigentes e treinadores serão proibidos de participar de apostas. O Ministério da Fazenda também propõe suspender apostas e reter prêmios de eventos suspeitos de manipulação.
De olho no lance
O argumento que mais pesa na discussão da MP é a estimativa de arrecadação anual com a tributação, “chute” que partiu de representantes de casas de apostas. Ninguém sabe quanto, de fato, o mercado movimenta, mas a Abaesp (Associação Brasileira de Apostas) estima até R$ 15 bilhões.
Quem defende a regulamentação afirma que as apostas continuarão existindo, com ou sem interferência estatal. “O país pode ter receita e proteger consumidores”, diz Tiago Gomes, sócio do escritório Ambiel Advogados, que atende casas estrangeiras no país.
Segundo fontes ouvidas pelo TAB, se as apostas forem inteiramente legalizadas, é possível que apenas um punhado de casas monopolizem o setor — e que a maioria das bets volte para a ilegalidade, pois nem todas vão aceitar (ou conseguir) cumprir exigências como a outorga de R$ 30 milhões para operar durante cinco anos.
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Também é provável que os profissionais prefiram operar “offshore” (sites de casas não sediadas no Brasil), ainda que ilegalmente, como fizeram por quase 20 anos.
“Quem obtém lucro vai sair do Brasil”, diz o trader Nettuno. “Vão sobrar aqui casas de apostas sugando aqueles apostadores amadores que depositam pouco dinheiro e perdem.”
Procurados, Bodog, Pixbet, Vem Betar, Lance! e Betfair não retornaram o contato. Tiago Leifert não quis comentar. A Globo informou que as campanhas de anunciantes respeitam orientações do manual de práticas comerciais da empresa, que atende às normas do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e Cenp (Conselho Executivo das Normas-Padrão). *Nomes fictícios. (Assista ao vídeo da reportagem do UOLTV no UOL TAB)