Documentário sobre Castor de Andrade expõe proximidade da Globo e contraventor

Destaque I 23.02.21

Por: Elaine Silva

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“Eu não sou juiz e nunca fui delegado. Para mim, o jogo do bicho era uma contravenção. Criminosos eram as pessoas que estavam no governo. Porque, naquele momento, enquanto no jogo do bicho valia o que estava escrito, no governo valia o que estava na cueca”, declara Boni de Oliveira no documentário sobre Castor de Andrade

Depois dos ótimos “Marielle” e “Em Nome de Deus”, o Globoplay emplaca mais um acerto com “Doutor Castor”, série documental em quatro episódios sobre o bicheiro Castor de Andrade (1926-1997). Um dos homens mais poderosos do Rio de Janeiro nos anos 80, o contraventor não só dominava o jogo do bicho como também comandava o time de futebol do Bangu e a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Com forte influência política e também sobre a polícia, flertava com o poder e chegava a adentrar tribunais como réu com a certeza de qual seria a sentença: sairia livre.

Tanta proximidade com altos escalões, claro, o transformou em figurinha carimbada na televisão. E, nos dois últimos episódios, a produção da plataforma de streaming corajosamente mostra a proximidade do contraventor com a Rede Globo, especialmente sua amizade com Boni, então vice-presidente da emissora. “Eu não sou juiz e nunca fui delegado. Para mim, o jogo do bicho era uma contravenção. Criminosos eram as pessoas que estavam no governo. Porque, naquele momento, enquanto no jogo do bicho valia o que estava escrito, no governo valia o que estava na cueca”, afirma o diretor em depoimento ao documentário dirigido por Marco Antonio Araujo.

Em 1990, a emissora chegou a exibir uma roda de discussão entre presidentes de escola de samba – a grande maioria bicheiros – comandada por Fátima Bernardes. “Resolvemos fazer uma mesa redonda de Carnaval na TV Globo exatamente para que ela fosse proveitosa para os desfiles das escolas de samba. Hoje, seria impossível fazer essa mesa redonda por causa da baboseira do politicamente correto”, conta Boni, que na série ainda relembra o dia em que Castor foi a um show disfarçado e ainda assim reconhecido e aparece desfilando pela Mocidade.

Atual diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel pondera no documentário. “Naquela época era meio que aceitável esse tipo de relação. ‘[O jornalista pensa] Pô, ele é bicheiro, mas polícia não prende, não tem processo, nada transitou em julgado, ele é presidente honorário da escola de samba tal, do clube de futebol tal, dá entrevistas, faz essas brincadeiras e eu entrevisto numa boa’. Nós somos escravos do tempo em que a gente vive”, conta o jornalista. “Naquela época aquilo era possível. Hoje, aquelas entrevistas não seriam feitas tal como foram feitas.

A simpatia pelo contraventor era clara em reportagens dos anos 70 e 80 que o tratavam como figura folclórica nos campos de futebol e nos bastidores dos desfiles. Nesse sentido, a autocrítica e a reflexão sobre a proximidade ou leniência no tratamento deferido a Castor – dentro de uma plataforma pertencente à própria Globo – são bem vindas e expõem as contradições e uma sociedade complexa como a nossa.

As boas relações do bicheiro envolveram também alguns famosos. Agnaldo Timóteo diz ter recebido dinheiro para sua campanha. Alcione aparece sambando e abraçando Castor. João Havelange (1916-2016) divide mesa de jantar. Já Jô Soares recebe o bicheiro com muita cortesia em seu talk show no SBT, em 1991, e ainda é chamado de amigo por ele.

A série é o retrato de uma outra época, de fato, mas a mistura de samba, contravenção, política e futebol resulta em um “suco de Brasil” ainda muito atual. O Globoplay tem virado um ótimo para campo para criação de documentários sobre o país. (Fefito é Colunista do Splash – UOL)

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