Nicolau Olivieri: Vale o escrito?
No excelente documentário “Vale o escrito”, disponível na plataforma da Globoplay, ainda no início do primeiro episódio, é informado que o jogo do bicho “emprega” cerca de 70 mil pessoas no Rio de Janeiro.
O documentário é excelente, o roteiro é ótimo e os entrevistados são todos personagens fascinantes — ainda que por razões pouco edificantes — de uma realidade que, embora muito bem-conhecida de todos os cariocas, raramente aparece tão bem retratada.
Até por isso, pela riqueza da história que o documentário conta muito bem, esse dado sobre a quantidade de pessoas empregadas acabou não sendo muito destacado e explorado, apesar de se tratar de um número escandaloso: 70 mil pessoas é muita gente.
Para que se tenha ideia, o total de empregados do setor financeiro no estado do Rio de Janeiro em 2021 era de 47.915 (1)
A indústria do jogo do bicho é o oitavo maior empregador do Estado do Rio, a julgar pelos números de 2021, que são os últimos registros disponíveis a respeito, divulgados pelo Sebrae.
Ocorre que não são 70 mil pessoas empregadas, no sentido técnico-jurídico. Tecnicamente, não há “emprego” no jogo do bicho porque a tradicional jurisprudência trabalhista não reconhece a existência de vínculo de emprego, tal qual prevista na CLT.
São 70 mil que trabalham à margem de qualquer proteção legal.
Em 2010, o TST editou a Orientação Jurisprudencial 199 da Subseção de Dissídios Individuais I, com o seguinte teor:
JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO. É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico.
É curioso notar que, ao contrário do que ocorreu em relação a vários outros tópicos do Direito do Trabalho, a jurisprudência não parece ter evoluído muito na proteção dos trabalhadores do jogo do bicho.
A impossibilidade de reconhecimento do vínculo de emprego do trabalhador do jogo do bicho, em razão da ilicitude do seu objeto, não parece ter sido questionada com o mesmo ímpeto com que foi muitas vezes combatida a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017)
Talvez fosse ponderável considerar que o ilícito não é o trabalho exercido pelo apontador do jogo do bicho, mas sim o que o empregador faz, depois, com o resultado desse trabalho.
O jogo do bicho é uma instituição bem-conhecida — e tranquilamente aceita pela sociedade, que frequenta desde as quadras das escolas de samba até os camarotes mais exclusivos do Sambódromo, sem nenhuma reprovação ou questionamento da parte dos órgãos de segurança e da Justiça a despeito da conhecida relação entre bicheiros e as escolas de samba.