Taxação de apostas esportivas e programas de prevenção à lavagem de dinheiro
Muito se tem noticiado sobre a tributação das apostas eletrônicas em jogos esportivos pretendida pelo Ministério da Fazenda. Isto se dá num contexto em que a Lei 13.756, apesar de em vigor desde 2018, ainda aguarda regulamentação, o que na prática colocou a indústria dos jogos numa confortável zona cinzenta, que finalmente parece estar chegando ao fim. A referida lei autorizou a exploração de loterias na modalidade de apostas de quota fixa – nome jurídico dado às apostas esportivas ou ao betting, como é internacionalmente conhecido.
No cenário atual, a falta de regulamentação para as apostas esportivas tem permitido que esse tipo de atividade ocorra no Brasil sem que haja qualquer incidência tributária, não sendo por acaso a multiplicação do número de casas de apostas “brasileiras” as quais, na realidade, operam virtualmente a partir de plataformas sediadas em outros países, com licenças para jogos obtidas em jurisdições estrangeiras como Malta, Curaçao ou Gibraltar, locais onde a prática do betting há muito está regulamentada.
As casas de apostas em questão são aquelas que oferecem ao apostador uma modalidade lotérica de jogo em que ele sabe de antemão quanto receberá caso acerte o prognóstico. Esse fator multiplicador é habitualmente conhecido como odds, que por sua vez nada mais são do que cotações que exprimem a probabilidade de ocorrência de um determinado resultado. Ou seja, o valor apostado multiplicado pelas odds correponderá ao valor do prêmio em caso de acerto.
Se a Medida Provisória que vem sendo anunciada pelo governo federal de fato sair do papel, ela permitirá a concessão de licenças, devidamente taxadas, para os interessados em explorar loterias esportivas de forma online no Brasil. Assim, a expectativa é que as casas de apostas esportivas que desejem operar neste território tenham sede no país, possuam um capital social mínimo e passem a ser fiscalizadas e tributadas. Espera-se também que seja regulamentada a publicidade e o patrocínio das bets a eventos esportivos e times de futebol.
A iminente regulamentação nos colocará na metade do caminho em relação ao que ocorre na maioria dos países europeus, que permitem não só o betting como o gambling. Parece confuso? Pode ser facilmente esclarecido.
Embora ambos sejam modalidades de jogo com aposta em dinheiro, no betting a premiação é baseada em acertos em eventos esportivos reais, nos quais a habilidade e a decisão estratégica do apostador é levada em conta (previsão do placar, número de cartões, quem fará o primeiro gol etc.). Nessa modalidade o apostador já sabe de antemão quanto poderá ganhar em caso de acerto, o que significa que a premiação é atrelada ao valor da aposta e não ao produto da arrecadação.
No gambling, clássico jogo de azar (roleta, caça-níqueis, bingo, entre outros), ganhar ou perder são fatores aleatórios que dependem principalmente da sorte, premiando a partir de algumas variantes. Assim, ainda que o lobby pela legalização dos cassinos volte a ganhar força, em decorrência lógica da decisão da taxação das apostas esportivas, a jogatina seguirá ilegal até que seja aprovada lei específica sobre a matéria. Afasta-se, de tal modo, qualquer dúvida sobre o conteúdo da Medida Provisória em preparação pelo Palácio do Planalto, que ficará restrita às apostas esportivas.
Superada a questão regulamentar, pela criação de regras claras para o setor, teremos no país um ambiente de maior segurança jurídica para a prática do betting, e players que até então optaram por não processar pagamentos de jogos eletrônicos diante do risco em potencial de não estar em conformidade provavelmente se sentirão tentados a disputar um mercado que cresce diariamente.
Por outro lado, esse mesmo mercado, a exemplo do que ocorre nos países em que jogos esportivos e de azar são permitidos, ainda que bem regulado, continuará sendo um ambiente propício para a lavagem de dinheiro. Tal afirmação deve-se a fatores como: a) os créditos nas casas de apostas ficam em e-wallets que cumprem a função de uma conta de depósito, havendo a possibilidade de transferência eletrônica do saldo ou do pagamento de prêmios para outra conta de depósito; b) as transações financeiras são instantâneas; c) ausência do face to face; d) ausência de restrição territorial, ou seja, aceitam-se jogadores de diferentes países; e) movimentação de grandes volumes de dinheiro, muitas vezes em dinheiro vivo; f) os créditos de aposta e o dinheiro são intercambiáveis.
Baseado na experiência internacional[1] é possível identificar os obstáculos a serem superados pelas instituições que pretendam ter programas de compliance eficazes no combate à lavagem de dinheiro. Soma-se a isso ao fato de que os programas de prevenção ao crime há muito tempo são uma realidade absoluta no universo dos sujeitos obrigados.
Por outro lado, a grande novidade, pelo menos no âmbito nacional, será a construção de um modelo[2] de prevenção e fiscalização voltado às casas de apostas esportivas, que com a regulamentação por vir deverão cumprir as exigências mínimas de “conheça seu cliente” (KYC), além do monitoramento e da comunicação ao Coaf das atividades suspeitas. Por consequência, as bets deverão contar em sua estrutura organizacional com pelo menos um compliance officer, que deverá dar atendimento às exigências legais de conformidade como ocorre nas instituições financeiras e nas instituições de pagamentos.
Tudo está a indicar que o mercado de apostas esportivas, se regulamentado pelo poder público, será economicamente promissor. O conjunto de medidas a conduzir as apostas – como quase tudo – deverá agradar uns e desagradar outros. No entanto, um ponto parece ser indiscutível: a evolução do ambiente regulatório busca minimizar os riscos da lavagem de dinheiro, e bons programas de compliance serão fundamentais para o sucesso da empreitada, seja sob o ângulo das autoridades públicas, da sociedade ou mesmo da indústria.
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[1] Periodicamente a Comissão Europeia realiza avaliações supranacionais de riscos determinando o risco de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo na União Europeia em vários setores, dentre eles o de jogos online. De igual modo o GAFI, pelo menos desde 2019, também tem incluído em seus relatórios de diretrizes para avaliação de riscos os cassinos eletrônicos.
[2] Olhando para a Europa encontramos como referência a Comissão de Jogos de Azar (Gambling Comission), órgão responsável pela regulamentação e fiscalização dos jogos no Reino Unido. A regulamentação britânica é considerada uma das mais completas em relação a políticas de proteção a menores de idade e pessoas vulneráveis, bem como em relação às políticas antilavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo. De acordo com as regras criadas pela comissão são exigidos dos cassinos a apresentação de relatórios periódicos de avaliações de risco, políticas AML atualizadas, enfim, boas práticas que garantam efetividade na prevenção ao crime.
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(*) Débora Motta é PhD Law e especialista em compliance e antilavagem de dinheiro. Professora no LLM de Direito Penal Econômico e Compliance do IDP. O artigo foi veiculado no JOTA.inf..