Udo Seckelmann: Loot boxes são jogos de azar?

Destaque I 09.04.21

Por: Magno José

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Udo Seckelmann*

A discussão a respeito do enquadramento das loot boxes como jogos de azar ocorre há alguns anos no cenário internacional da indústria de iGaming, mas passou a ganhar mais relevância no Brasil recentemente.

Em fevereiro de 2021, a ANCED (Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) ajuizou Ação Civil Pública contra diversas desenvolvedoras de games visando o enquadramento das loot boxes como jogos de azar no Brasil.[i] O processo está em trâmite perante a Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal, logo, ainda não há decisão judicial sobre o assunto.

Não obstante, a expectativa por uma definição no Brasil sobre a questão vem gerando debates e divergências entre juristas, inclusive em âmbito internacional. Afinal, seriam as loot boxes consideradas “jogos de azar”?

Conceito de Loot Boxes

De acordo com o Department for Digital, Culture, Media and Sports do Reino Unido (“DCMS”), Loot Boxes consistem em recursos incluídos em videogames que podem ser acessados através do game ou comprados com itens “in-game”, moedas virtuais ou diretamente com dinheiro real. Tais caixas contêm itens aleatórios, para que os jogadores não saibam o que receberão antes de abri-las, mas com a garantia de que receberão algo. [ii]

As loot boxes variam na forma em que são acessadas, seu custo, como a recompensa aleatória é selecionada e no conteúdo de retorno. Elas são uma forma de microtransação disponível dentro do game.

No entanto, as loot boxes são apenas uma parte dos produtos incluídos no mercado de microtransações do game. Nos demais produtos disponíveis, o jogador sabe qual item ele receberá antes da compra, enquanto na loot box o elemento randômico prevalece.

Loot Boxes em Outros Países

Por não existir uma definição universal de gambling, o enquadramento das loot boxes como jogo de azar ou não varia entre países.

Em novembro de 2017, a Gambling Commission do Reino Unido determinou que as loot boxes não se enquadravam na definição de gambling contida no UK Gambling Act 2005. Em tal ocasião, comunicaram o seguinte:[iii]

 

“(…) Nosso ponto de partida para decidir nossa posição com qualquer produto é examinar atentamente se ele se enquadra ou não na UK Gambling Act 2005. A definição do que é legalmente classificado como jogo de azar é feita pelo Parlamento e não por nós. O nosso papel consiste em aplicar essa definição às atividades que vemos e quaisquer alterações a essa definição devem ser efetuadas pelo Parlamento.

A lei estabelece uma linha entre o que é e o que não é jogo de azar. Como regulador, patrulhamos essa linha e quando uma atividade a atravessa e representa um risco para as pessoas, especialmente crianças, temos e iremos tomar medidas robustas…

Um fator-chave para decidir se essa linha foi cruzada é se os itens do jogo adquiridos “por meio de um jogo de azar” podem ser considerados dinheiro ou quantificáveis em dinheiro. Em termos práticos, isso significa que como os itens do jogo obtidos por meio de loot boxes são confinados para uso dentro do jogo e não podem ser sacados (cash-out) é improvável que sejam considerados como uma atividade de gambling licenciável. Nesses casos, nossos poderes legais não nos permitiriam intervir.” (tradução livre)

 

Em outubro de 2019, o Children’s Commissioner for England recomendou ao governo que “adotasse medidas imediatas para emendar a definição de jogos de azar no UK Gambling Act 2005 para regular as loot boxes como gambling.”[iv] O governo britânico se mostrou disposto a tomar uma atitude para, se comprovado o impacto das loot boxes na ativação de comportamentos semelhantes aos provocados pelos jogos de azar, garantir a proteção das crianças e adolescentes.

Em novembro de 2017, a Gambling Authority da Dinamarca emitiu um comunicado oficial informando que as loot boxes analisadas (em especial, no game Star Wars Battlefront 2) não se enquadrariam como gambling, pois não cumpriria os seguintes requisitos:[v]

      • Deve haver uma quantia em dinheiro arriscada (stake);
      • Deve haver um elemento de acaso/sorte (chance);
      • Deve haver um prêmio (se o prêmio for um item virtual, deve ser passível de conversão em valor monetário).

Visto que os itens adquiridos via loot boxes no Star Wars Battlefront 2 não podem ser transacionados ou convertidos em dinheiro real, tal atividade não foi considerada jogo de azar na Dinamarca.

Em abril de 2018, a Gaming Authority da Holanda declarou que loot boxes nas quais os itens virtuais adquiridos sejam transferíveis entre jogadores (tendo, assim, valor econômico) são jogos de azar, enquanto as loot boxes que tenham itens intransferíveis não serão consideradas jogos de azar.[vi]

Em 2018, a Gaming Authority da Bélgica entendeu que diversos videogames com loot boxes violavam a lei belga (Gaming and Betting Act 1999) e, assim, consideraram loot boxes como jogo de azar. De acordo com tal lei, jogo de azar seria “qualquer jogo em que uma aposta de qualquer tipo conduza à perda desta aposta por pelo menos um dos jogadores, ou uma vitória de qualquer tipo para pelo menos um dos jogadores ou organizadores do jogo, e pelo qual o acaso pode até ser um elemento secundário no curso do jogo, indicação do vencedor ou determinação do tamanho dos ganhos”.[vii]

Observa-se, portanto, que cada país possui uma legislação própria sobre definição de jogo de azar, o que acaba por impedir um consenso em relação ao enquadramento das loot boxes.

Conceito de “Jogo de Azar” no Brasil e o Possível Enquadramento das Loot Boxes

O conceito de jogo de azar no Brasil está incluído no artigo 50, §3º, da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941):

“§3º Consideram-se, jogos de azar:

      1. a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte;
      2. b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas;
      3. c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva.

Considerando o funcionamento das loot boxes, é possível excluirmos as alíneas “b” e “c” supra, visto que não se trata de apostas sobre corridas de cavalo ou sobre qualquer outra competição esportiva. Resta-nos analisar, pois, se as loot boxes se encaixariam na alínea “a”.

Para tanto, devemos ter em mente a definição de “contrato de jogo”, sobre o qual nosso ordenamento jurídico é silente, fazendo-se necessário o suporte na doutrina. De acordo com os doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

De fato, o contrato de jogo pode ser definido como negócio jurídico por meio do qual duas ou mais pessoas prometem realizar determinada prestação (em geral, de conteúdo pecuniário) a quem conseguir um resultado favorável na prática de um ato em que todos participam.

Registra-se que o jogo (e, consequentemente, o sucesso ou fracasso de cada parte) depende necessariamente da atuação de cada sujeito (chamado jogador), seja por sua inteligência, seja por sua habilidade, força ou, simplesmente, sorte.[viii]

Pela definição doutrinária, o contrato de jogo imprescinde necessariamente da participação efetiva dos jogadores na prática do ato que influência no acontecimento (ao contrário da aposta, na qual os participantes não influenciam no acontecimento) e do sucesso e fracasso das partes.

Isto posto, há de se considerar que loot boxes não se encaixariam na definição de “contrato de jogo”, visto que não seria um jogo onde os participantes teriam alguma influência no resultado final. No mais, nas loot boxes também não haveriam um “vencedor” e um “perdedor”, já que o adquirente do produto receberá os itens prometidos – variando apenas a especialidade ou raridade de alguns.

Há quem considere as loot boxes semelhantes às slot-machines (máquinas caça-níqueis), nas quais o jogador paga uma quantia em dinheiro para tentar receber um prêmio concedido de forma aleatória. No entanto, nas slot-machines o participante pode gastar seu dinheiro e não receber nada pela sua tentativa, enquanto nas loot boxes o comprador sempre receberá seus itens.

De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, as loot boxes se encaixariam na definição de “contrato de compra e venda de coisa incerta”, nos termos dos artigos 243 e 244 do Código Civil:

Art. 243. A coisa incerta será indicada, ao menos, pelo gênero e pela quantidade.

Art. 244. Nas coisas determinadas pelo gênero e pela quantidade, a escolha pertence ao devedor, se o contrário não resultar do título da obrigação; mas não poderá dar a coisa pior, nem será obrigado a prestar a melhor.

Assim, a comercialização das loot boxes se assemelhariam à compra de pacote de cartas ou figurinhas colecionáveis, nas quais o comprador não sabe quais itens receberá (coisa incerta), mas tem a certeza de que receberá um número específico (quantidade) de cartas/figurinhas (gênero).

Conclusão

A indústria de jogos evolui de maneira acelerada e movimenta cifras cada vez mais elevadas, exigindo-se que a inovação seja acompanhada pela legislação, mas muitas vezes esta última se torna antiquada (e até obsoleta) a ponto de não prever uma interpretação clara de quais atividades se encaixariam como permitidas ou não.

Nessa seara, importante ter em vista que cada videogame possui loot boxes com particularidades específicas, variando entre si a ponto de ser possível a permissibilidade de umas e a proibição de outras, conforme o nosso ordenamento.

A discussão a respeito das loot boxes não é simples e o Judiciário brasileiro deve ser o mais técnico possível para tomar uma decisão sobre o seu enquadramento ou não como jogo de azar.

(*) Udo Seckelmann é advogado do escritório Bichara e Motta Advogados. LLM em Direito Desportivo Internacional pelo Instituto de Derecho y Economía (ISDE) em Madri, Espanha. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD) – Comissão Jovem. Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB/Barra (RJ). Editor e escritor do Lex Sportiva, blog internacional sobre temas de Direito Desportivo. E-mail: [email protected]

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[i] Disponível em: https://www.ancedbrasil.org.br/anced-entra-na-justica-pedindo-proibicao-de-sorteios-ilegais-em-jogos-eletronicos/

[ii] Disponível em: https://www.ancedbrasil.org.br/anced-entra-na-justica-pedindo-proibicao-de-sorteios-ilegais-em-jogos-eletronicos/

[iii] UK Gambling Commission, “Loot Boxes within videogames”. Novembro/2017. Disponível em: https://www.gamblingcommission.gov.uk/news-action-and-statistics/News/loot-boxes-within-video-games

[iv] Disponível em: https://www.childrenscommissioner.gov.uk/wp-content/uploads/2019/10/CCO-Gaming-the-System-2019.pdf

[v] Disponível em: https://www.spillemyndigheden.dk/en/news/statement-about-loot-boxes-loot-crates

[vi] Disponível em: https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=67918ed1-1f01-4df2-81b0-c6f33f9e7d01

[vii] Disponível em: https://www.gamingcommission.be/opencms/export/sites/default/jhksweb_nl/documents/onderzoeksrapport-loot-boxen-Engels-publicatie.pdf

[viii] STOLZE GAGLIANO, Pablo. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. “Novo Curso de Direito Civil”, volume 4, São Paulo, Saraiva (2012), pp. 597–598.

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