Uma breve análise das consequências da ausência de regulamentação do mercado das apostas esportivas

Opinião I 04.07.23

Por: Magno José

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Pietro Cardia Lorenzoni e Alan Bittar Prado*

As apostas esportivas estão em voga no debate público nacional. A mídia, cumprindo sua função social, recorrentemente publica matérias relacionadas com dados do setor, avanços na regulamentação por parte do Governo Federal e episódios interessantes da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados. Em que pese o parlamento brasileiro investigue manipulação nos jogos de futebol, é inegável que os parlamentares – como várias vezes já afirmado, principalmente, pelos membros da mesa da CPI como o Relator Dep. Carreras – percebem a necessidade de uma regulamentação fundamentada nas melhores práticas internacionais como forma de coibir fraudes e crimes.

Nesse fluxo de informações que constrói a discussão pública, é relevante lançar luz na Lei de regência da matéria, a Lei nº 13.756 de 2018. O tema, desenvolvido pela CPI da Câmara dos Deputado, estudado pelo Ministério da Fazenda do Poder Executivo e amplamente debatido pela mídia, tem um núcleo jurídico-constitucional relevante, e ele deve ser sopesado nas análises e decisões sobre o mercado das apostas esportivas brasileiras.

O ponto essencial é o seguinte: o art 29 da Lei nº 13.756 de 2018 estabeleceu o prazo máximo de quatro anos para o Governo Federal regulamentar a matéria, o que não foi cumprido. A gestão passada (anos de 2019 a 2022) do Poder Executivo Federal descumpriu o comando legal.

Em que pese o regulamento de temas afetos a esse instrumento ter sido institucionalizado pelo Decreto nº 9.609, de dezembro de 2018, os dispositivos atinentes às apostas esportivas foram ignorados pelo então Poder Executivo Federal. Ante essa conjuntura, o atual Governo Federal, o mercado e a própria Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados lidam com as consequências práticas dessa omissão. É inegável que escândalos como os investigados pela operação Penalidade Máxima, graças à atuação da Polícia Civil e do Ministério Público de Goiás, são mais propensos a ocorrerem diante da omissão da Administração Pública Federal.

Afinal, a integridade no esporte – com a criação de ferramentas de prevenção e repressão de fraudes e crimes relacionados com manipulação de eventos esportivos – é matéria obrigatória em qualquer discussão que se proponha séria. Nesse sentido, as melhores práticas internacionais de regulação e fiscalização do mercado de apostas esportivas já demonstraram os benefícios de se tratar o problema a partir da regulamentação estatal. Nesse sentido, o Conselho da União Europeia recomenda a promoção da integridade do esporte contra a manipulação de resultados a partir da regulamentação, alicerçada na prevenção e na repressão. Isso só é possível em mercados regulados.

Exemplo de uma dessas melhores práticas é o dever das empresas, via associações civis ou agências reguladoras, comunicar eventuais suspeitas para o Poder Público. Com isso, a Administração Pública, por exemplo, conseguiria tanto articular as investigações necessárias para identificar e punir eventuais criminosos no âmbito penal, jogadores envolvidos na justiça desportiva e gestores no âmbito administrativo. O resultado é a promoção da integridade esportiva.

Inegável, portanto, que a omissão administrativa frente ao comando legal do art. 29 da Lei nº 13.756 de 2018 traz consequências práticas negativas para a sociedade e o mercado. Contudo, o problema vai além disso. A omissão administrativa tem consequência jurídica que não pode ser ignorada. A doutrina constitucional já respondeu o problema da omissão do Poder Executivo frente a obrigações legais, algo especialmente tutelado pela Carta da República de 1988 diante de omissões inconstitucionais ou ilegais. Quis o constituinte originário que essa proteção fosse feita mediante a positivação de institutos destinados ao saneamento da atitude pública omissiva, são esses: a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de segurança e o mandado de injunção. Seguindo esse raciocínio, a omissão pública que cerceia direito implica na possibilidade de se utilizar dessas ferramentas para que se faça presente a garantia secundária da jurisdição, uma vez que a primaria, supostamente suficiente para garantir direitos tutelados, restou violada.

Ante esse racional, a teoria fica consubstanciada no sentido de que a inobservância de uma obrigação legal dirigida ao poder regulamentar federal gera o cerceamento de um pretenso direito à regulamentação, in casu, aludido no §3º do art. 29 da Lei nº 13.756/2018. Disso, resulta a possibilidade de judicialização que se preste a garantir – secundariamente – o direito à regulamentação que se torna exigível após o decurso do prazo estipulado do supracitado dispositivo.

Nessa toada, a judicialização exaure-se como garantia secundária na medida em que visa dar concretude à uma condição de eficácia do instrumento normativo. Sob essa assertiva, leciona Hely Lopes Meirelles[1] na guisa de que o ato regulamentar se mostra como uma condição jurídica para a atuação normativa da lei. Como decorrência, a exequibilidade da norma resta impedida quando tal ato não é instituído. Por essas razões, a inércia do Ministério da Fazenda frente à obrigação legal de regulamentar pauta-se como um empecilho para a aplicação das normas empenhadas no Capítulo V. Nisso descansa uma premissa poderosa do Direito brasileiro, qual seja: não cabe o Poder Executivo decidir quais leis cumprir. O Direito contemporâneo exige, como desdobramento natural da força constitucional, obediência à integralidade do ordenamento jurídico.

Numa análise mais ampla, a omissão administrativa tem efeitos além da relação jurídica individual entre administrado e Administração. Por exemplo, é inegável que a ausência de regulamentação fomentou os escândalos de manipulação de partidas. É indicativo que a omissão administrativa da gestão anterior impediu que o atual Ministério da Fazenda tivesse as ferramentas para combater essas fraudes. E, por fim, também é relevante que a falta de regulamentação prejudica as empresas sérias de apostas esportivas na medida que as furta de um caminho institucional de denúncia de atividades suspeitas ao regulador. Para tudo isso, há uma resposta: regulamentação eficiente e responsável.

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[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro: 17. ed., Malheiros, 1992.

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(*) Pietro Cardia Lorenzoni é advogado, professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF), doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e Alan Bittar Prado é sócio do SPRB Advogados, LLM em Competition Law and Economics pela Brussels School of Competition e especialista em compliance pela University of Central Florida.

 

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