‘Vale o Escrito’, série documental do Globoplay, mergulha na guerra do jogo do bicho no Rio de Janeiro
Histórias de famílias influentes com brigas internas pelo poder, fraudes, traições, prisões, vinganças e assassinatos. Parecem elementos de um clássico do cinema, mas estão há anos atrelados ao cotidiano do Rio de Janeiro. Trata-se do submundo do Jogo do Bicho, prática proibida por lei, mas que se organiza como um negócio de milhões, dividido por territórios, chefiado por representantes de núcleos familiares poderosos. A operação ocorre nos moldes de uma máfia e a série documental Original Globoplay “Vale O Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho” imergiu neste universo para investigar sua história, seus personagens e sua dinâmica, que impactam diversos setores do Estado.
A série traz os próprios protagonistas do Jogo do Bicho contando a história de suas atuações. Com exclusividade e ineditismo, ao longo dos sete episódios, bicheiros, seus herdeiros e suas mulheres falam sobre a dinâmica do negócio e não poupam críticas e acusações mútuas. Assassinatos que abalaram o Rio são revisitados e novos detalhes e informações estabelecem conexões que não podiam ser feitas quando estes crimes ocorreram. Os sete episódios já estão disponíveis no Globoplay, sendo o primeiro aberto para não assinantes.
Criador da série, Fellipe Awi expõe a importância de falar sobre o tema: “Sempre me impressionou que, em pleno século 21, uma atividade ilegal funcionasse ainda à luz do dia em qualquer esquina da cidade e, principalmente, mantivesse uma estrutura típica de máfia. Além da divisão de territórios, existe essa tradição quase monárquica da liderança dos negócios passada de pai para o filho mais velho.
Ricardo Calil, responsável pela direção e pelo roteiro da série ao lado de Fellipe Awi, explica a dificuldade em conseguir as entrevistas que serão exibidas ao longo da série documental: “Grande parte do nosso esforço foi convencer essas pessoas – que nunca falam sobre a contravenção ou, no máximo, dão declarações pontuais – a nos dar entrevistas longas e em profundidade.” As complexas negociações com entrevistados e o extenso trabalho de pesquisa levaram mais de dois anos.
“Mostramos que a máfia brasileira, carioca, é única no mundo, poderosa, com uma expressão estética incomparável”, resume Pedro Bial, que assina a supervisão artística do projeto, em comunicado divulgado para a imprensa.
A produção começa com um resgate da história do Bicho, com a sua estruturação a partir da criação de um grupo, em meados dos anos 1970, chamado de “Cúpula da Contravenção”, formado pelos chefões da época, que dividiram os territórios e pontos de jogos do estado entre si, evitando conflitos e fortalecendo os negócios. Ainda hoje esse é o modelo vigente, embora a emergência de uma nova geração de contraventores o tenha colocado à prova.
Com análises de historiadores e jornalistas, a série explica como, a partir da influência do Jogo do Bicho, estes líderes se tornaram patronos de escolas de samba das comunidades em que mantêm seus negócios. Os episódios desvendam o papel duplo de chefes da contravenção e benfeitores sociais em suas comunidades, prestando suporte às atividades educacionais e culturais, com influência nas condições de vida de suas regiões e na profissionalização do Carnaval carioca. Importantes nomes do Carnaval falam sobre o que representam essas figuras, como o carnavalesco Milton Cunha e o intérprete Neguinho da Beija-Flor.
Para Gian Carlo Belotti, diretor, a relevância da série está justamente na compreensão do Jogo do Bicho como influência sobre o Estado e seu funcionamento. “A série tem uma parte histórica muito forte, além de contar em detalhes o que acontece atualmente. Explica como se dá essa guerra nessas famílias tendo o Rio de Janeiro como palco, então enxergo a obra como necessária para entender o papel do Jogo do Bicho como parte do cenário de violência no Estado”.
Com supervisão artística de Pedro Bial, ‘Vale o Escrito’ é produzido pelo Conversa.doc, núcleo de documentários do “Conversa com Bial”. A direção artística é de Monica Almeida, e os diretores são Fellipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti. A produção executiva é de Erick Brêtas e Mariano Boni. (g1 Globo)
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‘O partido político mais organizado do RJ é o jogo do bicho’, diz Capitão Guimarães em série que entrevista bicheiros sobre a ‘máfia brasileira’
Aos 81 anos, Aílton Guimarães Jorge, mais conhecido como Capitão Guimarães, falou pela primeira vez com detalhes de sua trajetória na cúpula da contravenção do Rio em entrevista gravada para a série “Vale o escrito: a guerra do jogo do bicho”, estreia desta quarta-feira (1º) no Globoplay.
Em sua mansão em Niterói, na Região Metropolitana do Rio, entre citações a William Shakespeare e Bob Marley, afirmou que os bicheiros eram o “partido político mais organizado do Rio”, mas que foram “burros” ao buscarem os holofotes do carnaval carioca — ao se tornarem patronos de escolas de samba e criarem a Liesa, a liga que profissionalizou os desfiles da Sapucaí.
“O único bicheiro bandido que existe no Brasil é o do Rio porque nós fomos burros. Nós fomos aparecer com o samba.”
A série destrincha os personagens principais dessa história da “máfia brasileira”, como investigadores tratam a confraria de bicheiros que, tal como mafiosos italianos, se uniu e dividiu a área de atuação de cada grupo pelo Grande Rio — e, consequentemente, os lucros.
Um seleto grupo de contraventores cuja trajetória está diretamente ligada às histórias do carnaval, do Rio e da violência.
O jogo do bicho, proibido por lei, se organiza como um negócio de milhões e é celebrado por boa parte da população, seja em pontos de anotação nas esquinas, seja no Sambódromo com as escolas de samba, como diz Ricardo Calil, um dos diretores e roteiristas da série, ao lado de Felipe Awi.
“Se o Ministério Público tem razão, se é uma máfia, é uma máfia com particularidades muito brasileiras”, diz Calil.
Para o Capitão Guimarães, a longevidade do bicho vem da organização criada em meados dos anos 1970 entre os chefões e que mantém a cúpula da contravenção no poder até hoje.
“O partido político mais organizado aqui do estado do Rio se chama jogo do bicho. Porque nós temos diretórios nos 92 municípios do estado, uma direção única. Nós não temos briga, entendeu? Por quê? Nós vendemos o mesmo produto pelo mesmo preço com áreas definidas. Então, nós somos amigos entre nós. Não temos motivo para não sermos amigos”, explica.
Guerras de Andrades e Garcias
A fala do Capitão Guimarães faz jus à sua geração de bicheiros, mas ignora uma briga histórica de décadas e que parece não ter fim: a das novas gerações pela sucessão. Especialmente a que envolve duas famílias: os Andrade e os Garcia.
Em 1997, com a morte do “capo dei capi” — como é conhecido na máfia siciliana o “poderoso chefão” — Castor de Andrade, deu-se início a uma sangrenta batalha na própria família pela herança dos negócios.
A série também conta como Waldomiro Paes Garcia, o Maninho, começou a assumir os negócios do pai, Waldemir Garcia, o Miro, presidente de honra do Salgueiro e membro da cúpula do jogo de bicho.
Milionário e mulherengo, Maninho ficou amigo de jogadores de futebol e outros famosos. Chegou a ser capa de revista como o “novo rei do Rio”.
O perfil violento e ambicioso, no entanto, lhe deu vida curta. Foi assassinado em 2004, aos 42 anos, em outra morte não esclarecida — como a maioria na guerra do jogo do bicho. A série lembra a presença de Romário, Edmundo e Renato Gaúcho no enterro de Maninho.
Entrevista com Shanna e Bernardo Bello
Shanna, aliás, está entre os entrevistados da série, assim como sua irmã gêmea, com quem é brigada, Tamara; sua mãe, Sabrina; sua madrasta, Ana Claudia Soares (a primeira rainha de bateria do Salgueiro); e até o ex-cunhado, Bernardo Bello, ex-presidente da Vila Isabel e atualmente foragido.
Outro nome de destaque no atual cenário do bicho no Rio, Bello era casado com Tamara, começou a trabalhar com os Garcia, mas se separou da mulher e da família para assumir posição de chefia dos negócios. Responde, entre outros crimes, como mandante da morte de Bid, tio da ex-mulher.
Pesquisa de 2 anos e depoimentos inéditos
A série, em sete episódios, foi produzida em pouco mais de dois anos com muita pesquisa e depoimentos inéditos.
“Grande parte do nosso esforço foi convencer essas pessoas – que nunca falam sobre a contravenção ou, no máximo, dão declarações pontuais – a nos dar entrevistas longas e em profundidade”, conta Calil.
À frente da direção artística, o jornalista Pedro Bial resume a série:
“Mostramos que a máfia brasileira, carioca, é única no mundo, poderosa, com uma expressão estética incomparável”, diz Pedro Bial. (g1 Globo)