A higidez da portaria nº 1.330/2023 do Ministério da Fazenda e o vencimento da Medida Provisória 1.182/2023
O objetivo desta coluna é, justamente, definir que a Portaria nº 1.330 de 26 de outubro de 2023 do Ministério da Fazenda, por fundamentar-se em legitimo comando legal, é hígida e está alinhada ao sistema normativo. Antes, vale demonstrar quais são, essencialmente, os comandos desse normativo
Nos últimos meses, muito se tem falado no mercado de apostas esportivas brasileiro e na forma cujo seu crescimento exponencial ocasionou diversas questões merecedoras de atenção pelos mais diversos setores da sociedade e do Estado. Dentre as principais discussões, está o cenário jurídico e regulatório sob o qual esse mercado se funda e, em certa medida, sustentar-se-á daqui para frente. Isso porque, a Lei nº 13.756/2018 instituiu uma modalidade lotérica complexa e capilar, sobre a qual um mercado com capacidades arrecadatórias vultosas viria a ascender.
A Lei nº 13.756 de 2018, no seu art. 29, §3º, estipulou a necessidade do Ministério da Fazenda regulamentar as apostas de quota fixa. Com essa previsão, esperava-se a criação das condições ideais para o seguro desenvolvimento desse mercado. Ocorre que o poder público, durante 4 anos, manteve-se omisso quanto ao seu dever imposto; isso significa que, desde 2018, as apostas de quota fixa são legais, mas não regulamentadas. Tal fato, por óbvio, concretizou um ambiente instável para todos os atores do setor.
Em 2023, por iniciativa da nova gestão do Governo Federal, importantes diálogos foram construídos para sanar a omissão administrativa. Como resultado, duas soluções governistas foram criadas e encaminhadas para o Congresso Nacional: a Medida Provisória nº 1.182/2023 e o Projeto de Lei nº 3.626. A primeira foi editada em 24 de julho de 2023 e se dedicou a alterar, de forma imediata, alguns normativos da Lei nº 13.756/2018; o PL nº 3.626, por outro lado, veiculou outra parte da regulamentação. Atualmente, o PL nº 3.626 parece ser o marco do setor, já aprovado pela Câmara dos Deputados, de modo que, atualmente, prossegue no Senado Federal. Na Casa Revisora, essa proposição tramita na Comissão de Esportes e na Comissão de Assuntos Econômicos, dentre as quais a primeira já emitiu relatório final; falta, portanto, a emissão do relatório final da última Comissão que, de forma muito republicana e dialogada, está sendo construído pelo Senador Ângelo Coronel (PSD/BA).
O processo de regulamentação desse setor, desde a edição da MPV até as correntes discussões envolvendo o PL nº 3.626, tem sido marcado pelo estabelecimento de um sólido e transparente diálogo entre as instituições públicas e a sociedade civil, o que é indispensável para a estipulação de um arcabouço regulatório eficaz e alinhado com as diversas complexidades do setor. Nesse contexto, é perceptível que, a partir da abertura e da democratização da construção desse arcabouço, a regulamentação tem caminhado para um resultado equilibrado, no qual ambos os interesses público e privado são respeitados. Os pontos sensíveis recentemente veiculados – restrições exageradas na publicidade e propaganda e alta carga tributária – tendem a ser endereçadas pelo relator na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal.
Nesse quesito, forte é a atuação do Ministério da Fazenda, notadamente em relação ao Assessor Especial José Francisco Manssur e a Coordenadora-Geral de Apostas Simone Vicentini, que têm lidado diretamente com a especialização técnica da regulamentação. Sob essa dinâmica, o regulador, para atingir o nível de densificação normativa necessária, tem o condão de editar portarias que trazem comandos específicos e dão maiores contornos de segurança jurídica para o setor, o que está sendo feito com notável excelência.
As portarias são atos normativos que se destinam a detalhar e regulamentar comandos normativos amplos definidos por instrumentos mais genéricos, como Leis e Decretos; e, portanto, se estruturam sobre as balizas definidas por esses instrumentos, para, assim, manter um sistema normativo hígido e coerente.
A Portaria nº 1.330 de 26 de outubro de 2023 do Ministério da Fazenda, por fundamentar-se em legitimo comando legal, é hígida e está alinhada ao sistema normativo brasileiro. Essa Portaria dispõe sobre as condições gerais para exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa no território nacional. Para tanto, ela trouxe normativos acerca dos seguintes aspectos: (i) regime de exploração; (ii) limitações à exploração; (iii) direitos e obrigações dos apostadores; (iv) políticas de integridade; (v) jogo responsável e (vi) manifestação prévia de interesse.
A problemática está em uma corrente interpretativa que desafia a higidez desse normativo, com base nos instrumentos em que se alicerça. Segundo essa corrente, a ementa da Portaria nº 1.330/2023 estipula que os seus dispositivos se baseiam na Lei 13.756/2018 e nas alterações promovidas pela MPV nº 1.182/2023; e, por isso, a sua eficácia da Portaria referida estaria vinculada à eficácia da medida provisória, de modo que, se esta caducar, aquela perderia os seus efeitos. De igual modo, entende-se que a aprovação do PL nº 3.626 atribuiria à portaria o mesmo fim.
Respeitosamente, opina-se que esse entendimento não interpreta a Portaria Normativa nº 1.330 de 2023 nem o ordenamento jurídico brasileiro sob sua melhor luz. Ela, em verdade, representa um dos instrumentos voltados à satisfação da norma posta no art. 29, §3º da Lei 13.756/2018, que atribuiu a regulamentação das apostas de quota fixa ao Ministério da Fazenda.
Assim, foi da Lei de regência da matéria que surgiu o fundamento de validade da portaria; ao revés do que compreende aquela corrente interpretativa, que vincula a validade do ato normativo do Ministério da Fazenda à MPV nº 1.182/2018. Essa Medida Provisória se limitou a alterar os dispositivos da Lei nº 13.756/2018 e, portanto, se caducar somente tornará sem efeitos essas mesmas alterações. A explícita menção à ela – a MPV nº 1.182 – é melhor explicada por técnica legislativa e administrativa e não por ser fundamento de validade da Portaria.
Ademais, é impossível, também, constatar que a aprovação do PL nº 3626 tornaria a portaria sem efeitos, uma vez que suas regras complementam as disposições do projeto de lei; desse modo, a coexistência entre a Portaria nº 1.330/2023 e o PL nº 3.626 é, de fato, desejável, pois confere ao setor um maior grau de densificação normativa e, consequentemente, de segurança jurídica. De forma uníssona, o direito positivo traz norma que alicerça esse entendimento; o art. 2º, §2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, define que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existente, não revoga nem modifica a lei anterior”. Note-se: se é vedada a revogação, por lei posterior, de lei anterior que tem comandos complementares, solução diversa não pode ser dada à portaria que, legalmente autorizada pela Lei nº 13.756/2018, estabelece disposições específicas para o setor a par das existentes.
Respeitosamente, entende-se que a presente linha interpretativa, dentre as demais que existem, colabora melhor com o provável desfecho do processo de regulamentação. A atual conjuntura política aponta para um panorama no qual: (i) caduca-se a MPV nº 1.182, tornando sem efeito apenas as alterações por ela feitas na Lei 13.756/2018; (ii) aprova-se o PL nº 3626/2023, que disporá sobre diretrizes e procedimentos amplos para o setor de apostas esportivas; e (iii) mantém-se a eficácia da Portaria Normativa nº 1.330/2023 do Ministério da Fazenda, de forma a conferir unidade à sistemática regulatória, já que seus comandos marcam o início normativo da atuação regulatória do Ministério da Fazenda sobre o tema das apostas de quota fixa.
Em última análise, entende-se que a Portaria Normativa em análise representa o tão esperado início do processo de regulamentação, forte na Lei nº 13.756/2018. Nessa linha, o fundamento de validade desse instrumento é a Lei nº 13.756/2018 e não as alterações propostas pela MPV nº 1.182/2023, razão pela qual a sua higidez legal e constitucional independe da vigência da medida provisória, bem como da aprovação do PL nº 3.626. Com isso, ganham o setor e a sociedade brasileira, que descansam amparados pelo primeiro ato normativo – de muitos – do regulador federal brasileiro.
(*) Pietro Cardia Lorenzoni é advogado, professor de Direito Público do IDP-DF, Doutor em Direito pela UNISINOS-RS e Consultor Jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias