Daniella Soares de Miranda: “O edital nem sempre é a lei da licitação”
A Loteria estadual do Rio de Janeiro – LOTERJ foi a primeira loteria estadual a publicar edital de licitação de jogos após a decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou legal a exploração de modalidades lotéricas pelos estados membros no mesmo formato autorizado à União – ADPF’s 492 e 493 e a ADI 4.986
No edital de concorrência 01/2021, publicado recentemente, a LOTERJ intenciona explorar diretamente as atividades de jogos de prognóstico (exceto a Loteria de Múltiplas Chances, já operada em outro contrato), loteria instantânea e apostas de cota fixa, todas em meio físico e virtual. Para isso deseja contratar empresa ou consórcio de empresas que lhe dê condições indispensáveis para essa exploração.
Analisando de forma rápida o texto editalício e seus anexos é possível encontrar mais de uma dezena de inconsistências, que certamente serão alvo de pedido de informações, impugnações e revisões que levarão à republicação do Edital.
Alguns desses tópicos, em especial, têm chamado a atenção dos empresários interessados em participar do certame e dizem respeito às exigências feitas na fase de habilitação técnica em desconformidade com a Lei 8.666/93, art. 30 que prevê taxativamente o rol de documentos passíveis de cobrança.
1 – Exigência de comprovação de certificações prévias.
O texto do Anexo III – Termo de Referência do Edital, página 35 prevê que o licitante deverá apresentar os seguintes certificados como parte obrigatória da habilitação:
a) ISO 27001 – a norma ISO 27001 é o padrão de referência internacional para a gestão da segurança da informação.
b) WLA – World Lottery Association – Ser membro da Associação Mundial de Loterias, pois a WLA propõe estruturas de gestão e dissemina as melhores práticas no setor incluindo as orientações sobre jogo Responsável.
Esse tema já foi alvo de análise por parte do Tribunal de Contas da União e dos estados por diversas vezes e reiteradamente se decidiu que:
“Não é possível a exigência de certificação ISO, e outras semelhantes, com o fim de habilitação de licitante ou como critério para a qualificação de propostas.” [1]
Nesse mesmo julgado o Tribunal deixou claro dois pontos importantes: (i) “obter a certificação ISO é faculdade das empresas – não há lei que a indique como condição para exercício de qualquer atividade” e ainda sobre as empresas que possuem a certificação ISO (ii) “isso não garante que eles tenham qualidade superior aos de uma empresa que não seja certificada”.
Vê-se, portanto, que o critério escolhido pela LOTERJ para fase de habilitação vai além daqueles permitidos pela Legislação de regência e não garantem a contratação mais vantajosa para a administração pública.
2 – Comprovação de 3 mil pontos de vendas no estado do Rio de Janeiro.
No mesmo Anexo III – Termo de Referência do Edital, pag. 35, vem igualmente exigido como condição de habilitação técnica a apresentação de cadastro de 3 mil pontos de venda no território do Rio de Janeiro incluindo nome do responsável pelo ponto e sua qualificação, endereço, telefone de contato e e-mail.
Aqui também encontramos exigência bastante contestável já que igualmente não encontra amparo legal.
Podemos supor que a motivação da LOTERJ seria o desejo de, logo após a assinatura do contrato com o licitante vencedor, iniciar a exploração dos jogos imediatamente e para isso a rede de pontos de venda seria essencial.
Embora o anseio da administração seja legítimo, se estivermos certos quanto a sua motivação, a maneira como pretendeu alcançá-lo no edital é totalmente questionável.
Não é razoável imaginar que cada licitante interessado em participar do certame tenha que montar uma rede de 3 mil pontos de vendas apenas para participar do processo licitatório e ao final desmobilizar toda a rede caso não saia vencedor.
O tema é tão debatido nos tribunais de contas que mereceu inclusive uma súmula do TCU – n. 272 em 2012
“No edital de licitação, é vedada a inclusão de exigências de habilitação e de quesitos de pontuação técnica para cujo atendimento os licitantes tenham de incorrer em custos que não sejam necessários anteriormente à celebração do contrato.”
Essa súmula é bastante aplicada em casos de licitação de obras aonde o administrador desatento exige que o licitante comprove propriedade de maquinários e equipamentos na fase habilitatória. Ainda que toda essa estrutura seja imprescindível para o início da obra, não cabe tal exigência.
Por fim, podemos dizer que embora exista a máxima “o edital é a lei da licitação” não podemos pegar tanto ao pé da letra e entender que as disposições do edital podem estar acima da lei que o rege.
(*) Daniella Soares de Miranda é advogada e proprietária do Escritório de Advocacia – DMFRANCA ADVOGADOS. www.dmfranca.com.
[1] Acórdão no 2461/2007, do Plenário. Acórdão n.º 1085/2011- Plenário, TC-007.924/2007-0, rel. Min. José Múcio, 27.04.2011.