É preciso alterar o PL 3.626 para não violar a Constituição
O Projeto de Lei nº 3.626/2023, que trata da regulamentação das apostas de quota fixa (as bets), relatado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA), aprovado pelo Plenário do Senado.
Tempo para que, torçamos, seja revisto um ponto do texto que, se aprovado da forma como está, certamente irá causar diversos prejuízos aos estados e aos operadores de loterias do país.
Em linhas gerais, pretende-se acrescentar à Lei nº 13.756/18 (elenca as modalidades de loteria passíveis de exploração) o artigo 35-G, cujo parágrafo 2º dispõe: “Ao mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica será permitida apenas uma única concessão e em apenas um Estado ou no Distrito Federal”.
Dois problemas se evidenciam de imediato: o primeiro deles se vislumbra na Constituição. Limitar às operadoras de loteria apenas uma concessão em um país extenso como o Brasil é uma evidente afronta à livre concorrência, ainda que se trate de delegação de um serviço público.
Isso porque, ainda que a parcela da arrecadação que cabe ao poder público seja alocada em projetos da seguridade social, investimentos em segurança e mesmo no setor de esportes, o particular exerce essa atividade com o objetivo de obter lucro, como em toda atividade comercial — com a única diferença de que, aqui, presta um serviço público.
É certo que a violação à livre concorrência não só desequilibra o mercado, como cria obstáculos à posição do consumidor final — no caso, a coletividade — na dinâmica das relações de consumo.
Em segundo lugar, cabendo ao operador privado a concessão em apenas um estado, é possível prever que serão escolhidos aqueles cujos cidadãos têm maior poder aquisitivo, em prejuízo a competitividade e consequente arrecadação em estados menos atrativos.
O IBGE, inclusive, disponibilizou a lista dos produtos internos brutos de cada estado no ano de 2023, figurando São Paulo em primeiro lugar, com PIB de R$ 2,7 trilhões, equivalente a 30,2% de toda a atividade econômica do país. Em 24º lugar, por sua vez, figura o Tocantins, com R$ 51,7 bilhões, o equivalente a 0,6% da produção do país.
A discrepância sinaliza a preocupação indicada acima. Ambos os estados têm estudado o mercado para delegação do serviço de loterias, tendo o estado do Tocantins publicado decreto, no último dia 29 de novembro, regulamentando a exploração de tal serviço.
Cabendo à empresa ou grupo econômico apenas uma concessão, pergunta-se: o parceiro privado escolheria o estado de São Paulo ou Tocantins?
Esse acréscimo proposto no PL pode prejudicar estados mais vulneráveis economicamente, que se beneficiariam em muito com a exploração deste serviço, que certamente terão licitações desertas por ausência de interessados na sua exploração, deixando, por conseguinte, de arrecadar verbas relevantes para projetos sociais.
Tal disposição no PL 3.626/2023 não se presta a nenhum benefício, seja ao poder público, ao cidadão, ou ao parceiro privado. Espera-se que o adiamento da votação proporcione certa reflexão ao legislador, com a consequente retirada deste trecho quando da publicação do texto definitivo da lei.
(*) Anna Florença Anastasia é advogada administrativista no GVM Advogados, com atuação voltada sobretudo para o Direito dos Jogos. Tem graduação em direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara e é pós-graduanda em contratos e licitações pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O artigo foi veiculado no Consultor Jurídico.