É proposital a incoerência do título deste artigo, caro leitor, que fique bem claro. Outrossim, pode não parecer, mas o escritor não é contrário à tributação e regulamentação de apostas no País. Sempre defendemos que é melhor regulamentar o comportamento marginalizado, mas usualmente aceito pela população, do que manter a ilegalidade de fatos jurídicos que a termo acabam sendo sancionados pela prática social.
Com este sentimento, a Lei 14.790/23, que autoriza apostas virtuais em eventos desportivos, foi sancionada no apagar das luzes do conturbado ano de 2023, o que deveria ser motivo de comemoração – inclusive, ela vem sendo largamente celebrada por setores de online betting e o fiscal/fazendário, em vista da potencial arrecadação que trará a medida.
Já, inclusive, tivemos a honra de lançar opinião sobre a possibilidade de cobrança de dívidas de jogos de azar, mesmo quando proibidos. Ainda naquele contexto da Lei 13.756/21, que teve momentânea euforia com o suposto relaxamento da proibição das apostas, não foi devidamente tratado o maior obstáculo jurídico no Brasil, aquele aposto ainda na década de 1940 pela Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688/1941).
Apesar do período autoritário que vivia o País, a legislação foi recepcionada pela Constituição federal de 1988, e, assim, ainda tem status de norma vigente. Tal norma enquadra “estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público” como contravenção penal, ou seja, lança o ato na ilegalidade expressa.
Rememoremos que jogos de azar são aqueles que estão conceituados o § 3.º do artigo 50 da citada norma das contravenções, a saber: “a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva”.
Da análise da Lei 14.790/23, não fica expressa a abolição da contravenção penal acima descrita, o que seria temerário presumir, especialmente em atenção ao princípio da legalidade e da segurança jurídica. Poder-se-ia, então, considerar a adequação social da conduta como causa excludente de tipicidade? São questões que facilmente poderiam ter sido reguladas, perdendo o legislador, mais uma vez, a chance de deixar para trás o conceito assaz atrasado contido na Lei das Contravenções Penais, pensado em momento no qual não existia voz do povo no Congresso Nacional por causa da ditadura instalada no governo.
O contrassenso é tamanho que o art. 5.º da nova Lei 14.790/23 dispõe que “a autorização para exploração das apostas de quota fixa terá natureza de ato administrativo discricionário, praticado segundo a conveniência e oportunidade do Ministério da Fazenda”, sem, contudo, lembrar que o ato administrativo é pautado em conduta tipificada justamente – repiso – como contravenção penal.
Ou seja, continua na ilicitude aquele que “estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público” até que legislação revogue expressamente o artigo 50 do Decreto-lei 3.688/41. Ao mesmo tempo, a mesma conduta pode servir, desde que cumpridos os requisitos da Lei 14.790/23, como fato gerador de tributos variados.
O Supremo Tribunal Federal (STF) teve oportunidade de tratar rapidamente de tema correlato, quando o ministro Marco Aurélio Mello (CR 9970/EU) dispôs: “A antinomia, na hipótese, é flagrante: a proibição de antigamente contrasta com a habitualidade dos jogos patrocinados pela Administração Pública”.
Criou-se, em realidade, uma absoluta e paradoxal instituição transnacional tributário-jurídica em que os sites de apostas continuarão com os servidores e operação no estrangeiro, e, mesmo assim, serão tributados como negócio autorizado pela legislação brasileira, pagando e recolhendo pelo apostador aqueles valores revertidos aos cofres públicos, fato este que, apesar de em perfeito funcionamento na esfera fazendária, seguirá sendo contravenção penal.
Ponto de igual interesse e contrariedade é aquele, tratado em artigo anteriormente mencionado, da cobrança de aposta no Brasil. Antes, seria proibido cobrar apostas por disposição expressa dos artigos 814 do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/02), que em sua parte inicial alude: “As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento”. Ainda dispõe o artigo 815: “Não se pode exigir reembolso do que se emprestou para jogo ou aposta, no ato de apostar ou jogar”.
Ora, se se pode apostar, por claro que se poderia cobrar do apostador a quantia devida à casa de apostas chanceladas pelo Ministério da Fazenda, sob pena de enriquecimento sem causa, criando mais uma antinomia, agora com a legislação civil.
É de fácil previsão que haja contratos de mútuo ou fornecimento de “crédito” aos apostadores, que, por causa da alteração da lei, têm de ser amparados pelo Judiciário quando de sua cobrança, sob pena de, novamente, ver a segurança jurídica estraçalhar.
Não é difícil, igualmente, que se criem contratos de seguro e outros tipos de garantias fiduciárias para apostadores, temática que certamente chegaria ao Judiciário, mesmo à revelia da letra do art. 814 do Código Civil de 2002, ante a modificação inserida pela Lei 14.790/2023.
Outra provocação segue: enormes casas de apostas estariam liberadas a estabelecer e explorar jogos de azar, na espécie “aposta esportiva”, enquanto ONGs, estabelecimentos de caridade e outros (que comumente fazem rifas) poderiam ser punidos pelo mesmo art. 50 da Lei das Contravenções Penais, caso não peçam a autorização do órgão competente para rifar acessórios, vestuário e brindes. Isso não parece minimamente sensato.
Nem sequer se adentrou ao tema dos efeitos de curto e longo prazos, descurado e mal investigado quando da elaboração da Lei 14.790/2023, quanto aos apostadores, suas famílias, as potencialidades relativas aos danos psíquicos e socioeconômicos e a manutenção de um mínimo existencial do ser humano. A maior defesa da proibição, fora aqueles argumentos morais, é a de que a legalização dos jogos causaria excesso de casos levados ao Sistema Único de Saúde (SUS), argumento este que deveria, sim, ser considerado.
Aposta-se (ironicamente) em que a judicialização da questão será breve. Igualmente, é possível prever que o clamor político imperará. O que se pede é pela integridade do ordenamento jurídico, ainda que para isso tenhamos de nos valer das Cortes Superiores na moderna visão common law à brasileira.
Entre o jeitinho brasileiro de introduzir a aposta atravessando fronteiras digitais e até físicas e a regulação do ordenamento jurídico como um todo, o dever moral nos leva à clareza e à correção.
Cabe ao Congresso, sim, fazer da vontade de seus eleitores a lei. Contudo, o Legislativo tem por dever manter a coesão do ordenamento jurídico, planejando, ainda, políticas públicas que protejam a saúde mental dos apostadores, a fim de que o lance de sorte não se torne o pesadelo do apostador e de seu núcleo familiar.
(*) Marcelo Dias Freitas Oliveira é advogado empresarial, parecerista, pós-graduado em Advocacia Cível, especialista em Políticas Públicas e Controle Externo e especialista em Direito Tributário, é membro efetivo regional das Comissão de Direito e Inovação e da Comissão de Privacidade e Proteção de dados da Seccional da OAB/SP. O artigo foi veiculado no Estadão.