O jabuti inconstitucional no PL 3626: os efeitos anticompetitivos do Artigo 35-A
No último dia 22 de dezembro o PL 3626 foi aprovado na Câmara dos Deputados iniciando um novo capítulo no setor de jogos e apostas esportivas. Os avanços para essas modalidades lotéricas são inegáveis e a expectativa é a de que não tenhamos retrocessos na sanção presidencial
Contudo, de forma inexplicável, foi incluído no texto legal um dispositivo que, até então, não despertou tanta discussão, a despeito do seu inegável impacto negativo nas loterias tradicional e instantânea e da sua flagrante inconstitucionalidade. Estamos falando da inclusão do art. 35-A na Lei 13.756/2018, em especial seu § 2º, que predica limitação injustificada à competição nas loterias estaduais, ao determinar que “ao mesmo grupo econômico ou pessoa jurídica será permitida apenas 1 (uma) única concessão e em apenas 1 (um) Estado ou no Distrito Federal”.
O dispositivo, na prática, impõe uma delimitação indevida à autonomia dos Estados, na prestação dos serviços lotéricos e, ainda, impede uma competição efetiva nas licitações para a escolha do operador lotérico. Nos dois aspectos, evidencia-se a inconstitucionalidade desse jabuti legislativo.
Desde 2020, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou o monopólio da União, permitindo que os Estados e o Distrito Federal pudessem, também, instituir e explorar seus serviços lotéricos (ADPFs 492 e 493); os Estados passaram pouco a pouco a instituir seus regramentos locais de exploração de loterias estaduais, sempre amparados pela autonomia conferida pela Constituição Federal, aliado ao recente precedente da Corte Suprema.
O mote do precedente do STF foi justamente pró-autonomia dos Estados e do Distrito Federal. A manutenção da competência legislativa da União está bem delineada para especificar as modalidades lotéricas e regras gerais. Portanto, as limitações impostas pelo art. 35-A na liberdade de contratação pelos Estados extrapolam essa premissa.
Assim, ao vedar que um mesmo operador de loteria tradicional e instantânea atue em mais de um Estado, o art. 35-A do PL afronta o regime de competição reafirmado pelo STF, quebrando o monopólio da União. Do ponto de vista da autonomia dos entes federativos, a restrição, além de grave, se perfaz num instrumento que diminui a competitividade para os Estados que ainda não instituíram suas loterias ou ainda estão em vias de fazê-lo.
A conclusão prática desta restrição trazida pelo Parágrafo 2º do art. 35-A é que não será possível que um mesmo operador detenha mais de uma concessão. Isso claramente viola o preceito constitucional da livre concorrência, na medida em que impede o direito de livre exploração em outros estados pelo mesmo operador.
O Art. 170 da CF, que trata dos Princípios da Atividade Econômica, dispõe que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] IV – livre concorrência”.
Considerando que a decisão do STF e a previsão legal reafirmam a territorialidade, a barreira criada pelo art. 35-A retira o fator “competitividade” da exploração do serviço lotérico entre operadores estaduais, pois eles só podem atuar no território do único ente federativo em que estiver autorizado.
Neste cenário, nem na própria licitação é esperada competição, sobretudo nos certames carreados pelos Estados que instituírem suas loterias em momentos posteriores, visto que as licitações anteriores diminuirão sensivelmente o número de operadores “disponíveis”. Lembremos que o Brasil possui 26 Estados e o Distrito Federal.
No universo proposto pelo § 2º do art. 35-A, seriam necessários 27 operadores distintos apenas para assegurar que cada unidade federativa possa contar um operador. Para que exista competição em cada licitação, esse número precisaria ser ainda maior. Vale dizer que exigências de habilitação, especialmente de qualificação técnica e econômica, são barreiras naturais – e necessárias – à livre participação de interessados.
O texto do art. 35-A remetido à sanção presidencial, caso mantenha-se na futura lei que será promulgada, inviabilizará que um operador concorra e explore estes serviços em mais de um estado, podendo gerar, inclusive, um “efeito rebote”, ou seja, uma corrida por aqueles operadores mais experientes e com maior poder econômico para atuarem em estados supostamente mais rentáveis, o que, consequentemente esvaziará o interesse em outros estados menores ou menos desenvolvidos.
Vale lembrar que essa não é a primeira tentativa de impor restrições à liberdade de prestação em serviços públicos. No passado, o setor telefônico tinha disposições específicas, inclusive com a figura da “operadora espelho”. Também a concessão aeroportuária flertou com esse tipo de restrição, quando foi vedada a participação de operadores que já prestavam serviços em outros aeródromos.
Nos dois casos, o absurdo dessa delimitação foi superado pelas suas próprias fragilidades. No setor telefônico, as exigências da prestação forcejaram uma consolidação do mercado, afastadas empresas que não lograram fazer frente aos investimentos e custos operacionais necessários. No setor aeroportuário, a escassez de operadores interessados derrubou rapidamente a limitação.
No caso das loterias, esses dois fatores se impõem em conjunto: de um lado, a operação lotérica demanda investimentos maciços em sistemas de tecnologia, com custos elevados de operação, de modo a garantir a prestação segura e eficiente; do outro, o mercado lotérico é naturalmente restrito, sem um número elevado de operadores com experiência e envergadura suficientes para assumir 27 operações, nos Estados e Distrito Federal.
Portanto, a limitação imposta pelo § 2º do artigo 35-A aparentemente só beneficia a própria União, que terá o seu operador com escala natural, sem qualquer competidor com envergadura suficiente para impor uma competição efetiva. Delimitados, cada qual, a um Estado, nenhum operador poderá ter escala suficiente para fazer frente à operação federal, o que contraria os ditames da decisão do STF e, além disso, ofende o próprio princípio federativo.
É imprescindível, portanto, o veto presidencial ao Parágrafo 2º do art. 35-A para afastar a inconstitucionalidade flagrante do dispositivo e os seus efeitos negativos à autonomia federativa e à qualidade dos serviços prestados, em prejuízo aos usuários. Mais que isso, o veto evita um esperado contencioso sobre o texto legal, tendo em vista que os entes federativos poderão se socorrer do STF para corrigir a distorção do dispositivo.
(*) Adriana Ferreira Tavares, Caio de Souza Loureiro, Isabella Nogueira Lopes e Jun Oyafuso Makuta são advogados do grupo de prática de Gaming e E-sports de TozziniFreire.